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21 de mai. de 2011

Minhas Origens - Poesias de cordel


Minhas Origens


  
Ao sul do Ceará, em fértil vale,
Dos cariris antiga moradia,
Fica a cidade onde nasci um dia
Do mês de março, é essencial que fale
 
Que fui gestado estando o mundo em guerra,
E que nasci no ano do armistício,
Não era ainda equinócio, mas o solstício
Estava no seu fim em nossa Terra.
 
Criei-me livre como os passarinhos,
Vaguei nos montes onde as brisas vagam,
E elas me afagaram, como afagam
As finas plumas que alcatifam os ninhos.
 
Banhe-me nas nascentes e olhos d’água
Que gorgolejavam entre rochas vivas,
Alimentei-me das frutas nativas,
Ignorando da canícula a frágua.
 
Banhei-me no riacho cristalino
Que todos por aí chamavam “rio”
Mas que ante o verão virava um “fio”
Fino filete de água; cristalino
 
Quantos amigos tinham então
...e todos juntos íamos
Caçar, pescar, brincávamos, corríamos,
E na escola fazíamos a lição.
 
Da mesma geração, de ruas circundantes,
Filhos do que amigos de infância,
Cresceram ali, casaram, e com jactância
Contavam antigas loas, a nós, infantes.
 
Éramos quase irmãos de peles diferentes,
...Não eram nossos pais antigos companheiros ?
E nossos bisavós dali os pioneiros ?
E ali nossos avós crianças como a gente ?
 
Não tínhamos igual o amor pela terra ?
Não tinham os folguedos origens iguais ?
E as cantigas de roda não a faziam tais
As moças da cidade, assim como as da serra ?
 
Não sabíamos todos as mesmas orações ?
Não eram os mesmos os hinos que cantávamos ?
E em qualquer escola onde estudávamos
Não eram os mesmos os livros e as lições ?
 
No meu pensar ingênuo assim eu via,
Tanta felicidade imaginária,
Própria da inocente faixa etária,
E do meio infantil onde vivia.
 
Tirou-me do estágio onde estava
Estacionária a alma de criança,
O ler nos rosto a desesperança,
E o cinzento da seca que chegava.
 
O reflexo da mesma se fazia
Presente, e a miséria era ampliada
E mesmo onde jamais faltava nada,
Assustadora, ela cruel batia.
 
Em nossa casa, ela sorrateira
Como quem nada quer, veio chegando,
O pouco que restava dizimando,
E nunca mais pudemos ir a feira.
 
Pelas ruas os bandos de flagelados,
Vagavam tristes, aleatoriamente
Trazendo nos olhares a dor pungente
Daqueles que se sentem condenados.
 
As notícias dos saques perpetrados
Por famintos em vilas e cidades,
De reações e de barbaridades,
E de homens feridos e trucidados
 
Formaram-se então bando de varredores
Limpando ruas a troco de comida
Na ânsia de salvar a própria vida
Se invertiam todos os valores.
 
Eu era jovem, quase uma criança,
A tudo observava, tudo via,
Confesso hoje, que também sentia
Ir-se de mim o resto de esperança
 
Meu pai já não ganhava o sustento
Para a imensa prole que gerara,
Sua esperança ao certo esgotara
E se minguara todo seu alento.
 
Para aumentar a nossa desventura
Nosso poço secou, ficou só lama,
Bem cedo pai foi me tirar da cama
E pôs-me lá a cavar a terra dura.
 
Desceu-me numa corda, e eu raspava
A lama, e na lata atada à corda
De cima ele puxava até a borda
E a pouca distância à despejava.
 
Após limpar a lama, o barro duro
Se expôs, e comecei a cava-lo,
E no terrível afã de aprofunda-lo
Também me revesti de barro puro.
 
Depois de duas horas de labuta
Meu pai tirou-me, pois chegava a hora
De trabalhar, e ele ia embora,
Abrir sua oficina, sua luta.
 
No outro dia mal rompeu a aurora
Pai novamente veio e acordou-me
E novamente a velha corda atou-me
Desceu-me ao poço, escuro aquela hora.
 
Com vários dias de duro trabalho,
O velho poço muito aprofundamos
Grande foi o sucesso que logramos,
Deu água farta e pura como orvalho.
 
Andar nos brejos, observar a vida
Que em milhões de formas fervilhava
E a passarada que ali revoava
A e vegetação tão colorida
 
Era uma coisa que eu adorava,
E conhecia bem a região,
Já vira antes o brejo no verão,
Sabia que a terra ali rachava.
 
Mas juro; jamais antes vira nada
Igual aquilo que agora via
Uma terra crestada e que fedia
De ossos e de carcaças atapetada.
 
De vivo ali já não se via nada,
Pois i próprio vergel era cinzento,
Nada de verde havia, e um jumento
Estertorava à beira da estrada.
 
De verde só alguns mandacarus,
Ou alguma outra árvore resistente
A terra emanava um bafio quente
E no céu só se viam os urubus
 
Perambulei na terra devastada
Cheguei ao rio que agora cortado
Se dividia em poços isolados
Cercados de imensa passarada.
 
Segui pois margeando o leito seco
Daquele rio onde sempre nadava
A indiscritível mágoa me entalava
E eu arfava em busca de ar fresco
 
Num arrozal, na várzea que crestava
Ao sol, um homem num esforço ingente
Bombeava a água ainda existente
De um poço do rio que secava.
 
Ali vi a cena impressionante
Que tocou minha alma de criança
A e gravei de tal forma na lembrança
Que hoje a revejo a cada instante.
 
Pois em toda área humidificada
Pela água que ele bombeava
Uma multidão de aves disputava
Para pousar sobre a terra molhada.
 
Carcarás, gaviões, garças, socós,
Avoantes, rolinhas, bem-te-vis,
Marrecas, abrem-e-fecham, jurutis,
Entre urubus, e vi também mocós.
 
Carcarás eram os que mais haviam,
E uma coisa chamou-me a atenção
Embevecido, com um ramo na mão,
Andei entre eles, que não me temiam.
 
Parecia uma estória de Trancoso,
E que a paz fôra ali decretada,
Pois nem os bichos nem a passarada
Me via como algo perigoso.
 
Voltei ali algum tempo passado,
Do arrozal já nada mais restava
De luz ondulações da terra levantava,
E estava todo o solo esturricado
 
Muitas das aves que ali bebiam
Dali não mais saíram, não voaram
Suas ossadas brancas ali ficaram
E em meio a outras tantas, lá jaziam.
 
Depois da grande seca a decadência
Nos atingiu de modo irreversível
Embora nós fizéssemos o possível,
Nunca mais conhecemos a abundância.
 
Então meu pai talvez esperançoso
Partiu de lá em busca de melhora,
Preparou sua mala e foi embora,
Nosso destino ficou nebuloso.
 
Comecei a trabalhar e o ganhava,
Entregava a mamãe (como era pouco!)
Trabalhei noite e dia, como um louco
Mas meu esforço pouco adiantava
 
Só Juarez e eu ali ficamos,
Além de mãe e mais quatro crianças,
Como eram poucas nossas esperanças,
Como foi dura a luta que enfrentamos.
 
Pai só veio uma vez nos visitar
( com grosso bigode que jamais usara )
atravessando a praça, ao longe o avistara,
achei-o parecido, corri a confirmar.
 
Demorou pouco, viera a buscar-me,
Mamãe não permitiu, voltou sozinho
Atravessei o brejo, e lá no salgadinho
Chorei desesperado por ele deixar-me
 
Decidi-me a segui-lo, iria a Canindé,
Iria lá fugido, já que não deixavam,
Lembrei-me dos antigos, como viajavam
E decidi que iria, ainda que fosse a pé.
 
Olhei nos mapas os riscos das estradas,
O traçado dos rios e riachos
Admirei os antigos “cabras-machos”
Que tangiam as mulas carregadas.
 
Que venciam as léguas empoeiradas
( Isto meu próprio avô muito fizera )
Sem caminhões ou trens, naquela era
Eram as coisas em comboios transportadas.
 
Sonhei noites seguidas, que foragido
Descia para o mar, seguindo o rio,
Quanta aventura, quanto desafio,
Ganhava do “Karl May” que havia lido.
 
Mas foi de trem que acabei partindo
E o destino traçou-me outro caminho,
Não fui a Canindé, pai ficou lá sozinho
E em Fortaleza fiquei residindo.
 
Já mais de quatro décadas se passaram
Mas as vívidas lembranças que me habitam
Na memória e nos sonhos ressuscitam
Os quadros que então meus olhos fitaram

Mestre Egídio