EDIÇÃO EXTRA
VEJA, Abril de 1968
Martin Luther King,
líder da causa dos direitos civis nos
Estados Unidos, é
morto com um tiro de rifle num hotel de Memphis.
A polícia caça um
suspeito. O país entra em ebulição
Na cena do crime: King (o
terceiro da esq. para a dir.) na sacada do Lorraine; um dia depois, ele
morreria naquele exato local
O sonho radiante da conquista
da liberdade, dos direitos civis reconhecidos e da harmonia racial nos Estados
Unidos transformou-se num amargo pesadelo na tarde da última quinta-feira 4, em
Memphis, no Tennessee. Martin Luther King Jr., de 39 anos, pastor batista e
herói da luta dos negros americanos por igualdade, foi assassinado na varanda
do segundo andar do Hotel Lorraine, onde estava hospedado. Laureado com o
prêmio Nobel da Paz de 1964, o "doutor King", como era conhecido,
conversava com integrantes de sua comitiva, pouco antes de sair para jantar,
quando foi atingido no lado direito do pescoço por um único e fatal projétil de
alto calibre, disparado de uma distância estimada entre 50 e 100 metros. A bala
explodiu sua mandíbula e o arremessou contra a parede interna do edifício. King
ainda foi levado para o hospital Saint Joseph, próximo dali. Menos de uma hora
depois do brutal atentado, foi declarado morto. A polícia de Memphis, que ainda
não identificou o atirador, está à procura de um homem de cerca de 30 anos,
vestindo terno e gravata pretos, visto por testemunhas deixando as redondezas
em um Mustang último modelo. O suspeito é branco.
Último discurso: 'Eu vi a
Terra Prometida'
A chocante notícia do
assassinato de Luther King causou tumulto em Memphis e levou o governador do
Tennessee, Bufford Ellington, a convocar 4.000 homens da Guarda Nacional e
impor um toque de recolher aos 550.000 habitantes da cidade - 40% dos quais são
negros. Nas horas seguintes ao crime, 60 pessoas foram presas em Memphis. A
agitação alastrou-se de imediato para outros 110 municípios americanos, nos
quais foram registrados confrontos de civis com policiais, incêndios e saques a
residências e comércios. O saldo de 39 mortos e mais de 2.500 feridos é o
sombrio prenúncio de uma onda de violência racial que preocupa sobremaneira o
governo de Lyndon Johnson. Num pronunciamento de televisão transmitido menos de
uma hora depois do anúncio do assassinato, o presidente conclamou os americanos
a rejeitar a "violência cega" que tirou a vida de King. "A
divisão da população americana e o desrespeito à lei não nos levarão a lugar
algum", observou Johnson, que no passado já havia recebido o líder negro
no Salão Oval da Casa Branca.
Apelos semelhantes vieram de
figuras eméritas e díspares da malha social americana. Roy Wilkins,
diretor-executivo da National Association for the Advancement of Colored People
(NAACP), maior e mais influente organização de direitos civis dos Estados
Unidos, afirmou que King estaria "ultrajado" com os tumultos. Robert
F. Kennedy, ainda em campanha para a indicação do Partido Democrata à eleição
presidencial, fez um discurso emocionado em Indianápolis, onde clamou pela
união popular. "Neste momento tão difícil, devemos nos perguntar que tipo
de nação somos e para que direção queremos seguir. Podemos optar pelo ódio,
pela polarização entre brancos e negros; ou podemos fazer um esforço, como
Martin Luther King o fez, para entender e compreender, e para trocar a
violência, essa mancha de sangue que se espalhou por nossa terra, por um
esforço de compaixão e amor." Até mesmo militantes mais radicais, como
Charles "37X" Kenyatta, do Harlem, e Ron Karenga, de Los Angeles,
subiram em carros de som a fim de dissipar a animosidade latente na comunidade
negra. "Vamos nos manter calmos pelo doutor", diziam a seu público.
Fora do controle: policial ataca saqueador |
Fora do controle: policial
ataca saqueador
Premonição - Por ironia, foi
justamente a tentativa de manutenção da calma e da ordem que levou Martin
Luther King de volta a Memphis na última quarta-feira, véspera do crime. Uma
semana antes, o admirado ativista dos direitos civis, que presidia a
Conferência Sulista de Liderança
Cristã (SCLC, na sigla em inglês), estivera na cidade para liderar uma
marcha em apoio à greve de 1.300 funcionários negros da limpeza pública por
melhores condições de trabalho e salários decentes - paralisação que já durava
dois meses, sem concessões do intransigente prefeito Henry Loeb. Trabalhadores
de diversas áreas e estudantes aderiram ao movimento, que, no início do mês, já
reunira mais de 25.000 pessoas para um sermão do próprio reverendo. Entretanto,
no dia 28 de março, a selvageria tomou conta da mobilização, que saiu por
completo do controle dos seus organizadores. Lojas do centro da cidade foram
pilhadas e houve um violento confronto entre os manifestantes e a polícia.
Duzentas pessoas acabaram presas, 62 ficaram feridas e um rapaz de 16 anos foi
alvejado à morte.
De acordo com seus auxiliares,
Martin Luther King, que planejava para o final de abril um ato em Washington em
favor dos negros e brancos assacados pela pobreza no Sul do país - marco
inicial de sua "Campanha das Pessoas Pobres", nova menina dos olhos
do pastor de Atlanta -, chegou a pensar em não voltar mais a Memphis depois dos
distúrbios. Entretanto, decidiu que era necessária uma nova aparição na cidade
de modo a colocar em prática seu discurso, mostrando à população local que a
não-violência era a melhor arma na luta pela justiça econômica e social.
"Memphis será uma Washington em miniatura", declarou. Os dirigentes
da SCLC dividiram-se, mas por fim aprovaram a viagem de seu presidente ao
Tennessee, esperando apagar a imagem negativa deixada uma semana antes pelos
grevistas.
Traslado do corpo: a caminho
de Atlanta
O líder desembarcou em Memphis
na manhã do último dia 3, num vôo da Eastern Airlines cuja decolagem do
aeroporto de Hartsfield, em Atlanta, foi atrasada por conta de ameaças de uma
bomba a bordo - um esquadrão canino vasculhou as bagagens, sem nada encontrar.
O reverendo se hospedou no quarto 306 do modesto Lorraine, de um casal de
proprietários negros, localizado próximo à famosa Rua Beale e ao Templo Mason,
sede da Igreja de Deus em Cristo e ponto de partida e de chegada das marchas
pelos grevistas. Ali, naquela noite, estava programado um sermão de Martin
Luther King aos trabalhadores. Uma tempestade atingiu Memphis ao escurecer, e
um público frustrantemente pequeno acompanhou o que seria o último discurso do
ativista, em que parecia estar pressentindo a própria morte. King mencionou o
episódio da bomba no aeroporto de Atlanta e assegurou manter a serenidade
diante das ameaças constantemente dirigidas a ele.
"Cheguei a Memphis e
alguns já começaram a lançar ameaças, ou comentar as ameaças que estão por aí,
ou o que alguns irmãos brancos doentes iriam fazer comigo", começou ele.
Em seguida, o premonitório anúncio. "Bem, eu não sei o que virá agora.
Teremos dias difíceis pela frente. Mas isso não importa para mim agora porque
eu subi ao topo da montanha. Não me importo mais. Como qualquer pessoa, eu gostaria
de ter uma vida longa. A longevidade é boa. Mas não estou mais preocupado com
isso agora. Quero apenas cumprir a vontade de Deus. E Ele permitiu que eu
subisse a montanha. E lá de cima eu enxerguei. Eu enxerguei a Terra Prometida.
É provável que eu não entre lá com vocês. Mas quero que vocês saibam esta noite
que nós, como um povo, chegaremos à Terra Prometida. Por isso estou feliz esta
noite. Nada me preocupa. Não temo nenhum homem! Meus olhos viram a glória da
vinda do Senhor!"
A visão de um assassino: foi
desta janela que partiu o tiro fatal contra o reverendo
Som de dinamite - No dia
seguinte, Martin Luther King e outros membros da SCLC, incluindo seu amigo e
confidente Ralph W. Abernathy, passaram o dia inteiro no quarto 306 do
Lorraine, traçando estratégias para uma marcha prevista para a semana seguinte.
Encerrada a reunião, já no final da tarde, o presidente tomou um banho e saiu
do quarto por volta das 18 horas, vestindo terno preto e camisa branca. Seu
motorista, Solomon Jones Jr., esperava a fim de levá-lo à casa do reverendo
Samuel Kyles, onde o pastor seria recebido para jantar.
Antes de chegar ao
Cadillac, entretanto, King demorou-se cerca de três minutos na varanda do
hotel, em frente ao quarto. Um de seus auxiliares, Jesse Jackson, estava no
térreo, ao lado de um músico chamado Ben Branch, que se apresentaria à noite em
um evento no Templo Mason. Jackson apresentou Branch ao "doutor", que
fez um pedido ao intérprete: "Quero que você cante a música Precious Lord
hoje. E cante bonito". Também do térreo, o motorista Jones aconselhou o
chefe a colocar um sobretudo para proteger-se do frio.
Não haveria tempo, porém. Um
estampido parecido com uma explosão de dinamite, segundo o relato de uma das
testemunhas, fez todos os presentes se jogarem no chão - exceto Martin Luther
King, arremessado contra a parede verde do hotel pelo impacto mortal do tiro de
um rifle Remington calibre 30.06, aparentemente vindo da hospedaria do outro
lado da rua. Com a parte inferior da face desfigurada, a vítima caiu à beira da
porta, no centro de uma poça de sangue. Seus assistentes trouxeram toalhas para
tentar estancar o ferimento. Foi tudo em vão. A ambulância do Corpo de
Bombeiros demorou cerca de dez minutos e levou King ao Saint Joseph. Nada pôde
ser feito. Os médicos declararam sua morte às 19h05, segundo reportou o
porta-voz do hospital, Paul Hess.
Em Atlanta, Coretta King,
mulher do líder negro, foi avisada do atentado pelo prefeito de Atlanta, Ivan
Allen Jr., que providenciou um avião para levá-la a Memphis. Os dois já estavam
no terminal de embarque quando chegou a confirmação do óbito. Sem forças,
Coretta preferiu então retornar à modesta residência do casal, no bairro negro
de Vine City, em Atlanta - para onde Abigail McCarthy, esposa do senador Eugene
McCarthy e amiga de longa data de Coretta, também se dirigiu assim que soube da
infausta notícia. Telefonemas de condolências não demoraram a aparecer. O
senador Robert Kennedy foi um dos primeiros a ligar, e prontificou-se a mandar
um avião para transportar o corpo de volta a Atlanta.
Jesse Jackson e King: uma
conspiração?
O quarto 5 - Enquanto isso, na
cena do crime, investigadores esquadrinhavam as redondezas, especialmente a
hospedaria do outro lado da rua Mulberry. Junto à janela do banheiro coletivo,
a polícia encontrou uma cápsula vazia. O que os investigadores acreditam ser a
arma do crime, além de uma maleta e binóculos, foram recuperadas não muito
longe dali. A gerente do estabelecimento, Bessie Brewer, apontou o hóspede que
se registrou como John Willard como um provável suspeito. Além de ter aparência
física muito semelhante à de um homem visto por testemunhas deixando o local
rapidamente após os disparos, Willard pediu especificamente na recepção para
ficar no quarto 5 - o que tem a melhor vista para o hotel Lorraine. Dois homens
chegaram a ser detidos pouco depois do crime, mas acabaram sendo liberados em
seguida. O escritório local do FBI, por meio do agente Robert Jensen, entrou
nas investigações do assassinato, a pedido do procurador-geral Ramsey Clark.
Na opinião de um dos
auxiliares do líder ativista, os investigadores não precisariam ir muito longe
para encontrar o criminoso. Jesse Jackson, um jovem de 27 anos da Carolina do
Sul que integra a diretoria da SCLC, não se cansou de insinuar aos repórteres
uma possível conspiração oficial, com participação da polícia no atentado.
Integrantes da comitiva de King garantem que, segundos depois do tiro,
policiais armados com rifles, metralhadoras e capacetes começaram a chegar à
área do hotel - oficiais bem diferentes daqueles que já estavam dando
plantão no local, fazendo a segurança de King na cidade. "Não precisamos
chamar a polícia. Ela estava aqui em segundos. Eles me perguntaram: 'De onde
veio o tiro?' Eu disse, 'Atrás de vocês'. A polícia estava vindo de onde veio o
tiro." Jackson e o resto do mundo anseiam pelo resultado das
investigações, que apontarão o responsável por assassinar não apenas Martin
Luther King Jr., mas também um pouco da esperança dos americanos.
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