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31 de mai. de 2011

Para quem ainda não leu!... (cordel)

Para os que ainda não o leram



CONVERSA COM MEU PAI.
 
Lembras-te pai, do tempo das caçadas?
Sei que tu lembras, quem esqueceria?
Ansiosos dias antecediam o dia,
E a madrugada, longas madrugadas.
 
Nós as crianças, cordas desfiávamos,
Fazíamos do sisal as buchas de espingardas,
Bolinhas todas iguais, nas palmas enroladas,
E após tê-las bastantes, nos bornais guardávamos.
 
Na noite, a véspera, lembras pai ? Ainda...
Mãe ficava até tarde na cozinha
Preparando a farofa de galinha,
Que era o farnel...ei pai, tu lembras ainda?
 
A noite ainda escura, e a azafama,
Mãe sempre nestes dias, cedo estava em pé,
Fazia tapiocas, e o cheiro do café,
Era uma força extra a nos tirar da cama.
 
Quando além, no horizonte a barra mal surgia,
Espalhavam-se no ar os acordes plangentes,
De maviosa valsa em tons crescentes,
Como uma saudação ao novo dia.
 
Vinha lá da matriz, da torre encima,
Reverberar na urbe, o som possante
Da boca poderosa do alto-falante
Ao toque magistral do José Lima,
 
Ao matinal crepúsculo saíamos,
Eu era ao teu lado, pai, a pura euforia,
Que lindo para mim era o raiar do dia,
As cercas de aveloz ladeando o caminho,
 
Depois o vadear do rio salgadinho,
De mansa correnteza, e água tão gelada,
Que eu achava lindo, assim, de madrugada,
Gritando de alegria ao ver algum peixinho.
 
Chegando a algum lugar tranqüilo e aprazível,
Sentavas-te à sombra, e armados de espingardas,
Seguiam os manos em suas caçadas,
E eu por ser criança ficava contigo,
 
Gozando tua presença, a salvo do perigo,
Com a minha baladeira atirava pedrinhas,
Comia quando em vez, pedaços de galinhas,
Que tu me davas, pai, (como eras bom comigo)
 
Mas mesmo ali, tranqüilo e acomodado,
À tua moda tu também caçavas,
Com tiros infalíveis, fulminantes,
Fossem socós, rolinhas ou avoantes,
Que buscassem abrigo na ramada
Dentro do alcance de tua espingarda,
E eu iria buscá-las em instantes.
 
Hoje não há mais nada pai,
Hoje mais nada existe,
Se andasses por lá irias ficar triste,
A visão que se tem, olhando lá do horto,
E que na região tá tudo morto,
Como um lugar ermo e desolado,
Um campo de batalha arrasado,
Tá tudo morto! Pai; morto! morto!
 
E a tua garrucha, pai?
Como eu a achava bela...
Alimentava o sonho de atirar com ela
... um dia numa caçada, talvez adivinhando
Aquele sonho meu, qu’eu vinha alimentando
Puseste-a em minhas mãos, eu tremi ansioso,
Tu me recomendaste: “seja cuidadoso!”
Nunca aponte a ninguém, ainda que desarmada,
Deve sempre supor que esteja carregada,
Lembra pai? lembra? lembra?
Foi lá nos “carás”, nas grandes pedras pretas,
Tua bela garrucha, como as escopetas,
Tinha o cano curto e reforçado,
Do lado da culatra ele era sextavado,
O guarda mato e o cão eram de bronze fundido,
Toda a coronha era jatobá polido.
 
Deitei na rocha negra e lisa, emborcado,
Ambas as mãos seguras firmemente
Na coronha da arma, e esta a frente
Apontava, certas concavidades que haviam,
Na rocha, cheias d’água, onde bebiam
Matando suas sedes, as vítimas inocentes
Matávamos sem dó nem piedade,
Sentíamos prazer nesta perversidade.
(Hoje não o faríamos, pai, estamos diferentes!)
 
Acossada pela sede uma avoante,
Sentou a beira d’água e num instante,
Detonei a garrucha... que estampido!
Pelo recuo violento fui impelido
Para trás, no declive escorregando
Fui entre duas rochas projetado,
Por ti e Mané Vicente fui tirado...
Lembras pai? podia Ter morrido!
 
E dos serões pai, lembra?
Eu lembro todo dia...
Se pudesse voltar eu voltaria,
Tinha prazer de trabalhar contigo
Tu eras realmente meu amigo,
Tu nunca me ofendeste ou maltratastes,
Exerço a profissão que me ensinaste
E os meus filhos a aprenderam comigo.
 
Comigo estás pai, embora não te veja,
Sinto tua presença benfazeja,
E por ti tenho um amor sem medida,
A minha vida pai, com tua vida,
É uma vida só entrelaçada
Em cada obra que eu faço é projetada
A tua arte, o âmago da minha arte,
Pois na íntegra de ti foi aprendida.
 
Ao fim da vida caso haja outra vida,
Espero encontrar-te a esperar-me,
Assim continuarás a ensinar-me
A tua experiência adquirida,
Te contarei as minhas aventuras,
Os risos, as alegrias e as agruras
Da minha própria vida bem vivida.
.................Benção, pai!
........Também Deus te abençoe...
Se ti fiz algum mal, te peço, me perdoe,
 
.........................Até lá!
 
Teu filho, Egídio.