O jornalista Edwin
Black desvenda a conspiração industrial que fez o planeta abandonar
veículos elétricos para se viciar em gasolina
Carros movidos a eletricidade ou hidrogênio causam sensação em salões de
automóveis mundo afora. Inteligentes, silenciosos e, principalmente,
ecologicamente corretos, eles representam o supra-sumo da energia limpa
que promete livrar o planeta dos combustíveis fósseis e, por
conseqüência, nos salvar do apocalipse do aquecimento global. O segredo
do milagre, dizem as montadoras, são anos e anos de pesquisa em novas
tecnologias.
Na verdade, nem tão novas assim. O carro elétrico, por exemplo, foi
inventado nos anos 1830 – e, na virada do século 20, cerca de 90% da
frota de táxis que rodava em Nova York era movida a bateria e os bondes
elétricos proliferavam ao redor do mundo, inclusive no Brasil. Células
de combustível que eram capazes de produzir energia a partir de
hidrogênio também já existiam 150 anos atrás. Mas, se essas opções estão
disponíveis há tanto tempo, como é que o mundo terminou viciado em
diesel e gasolina?
O jornalista americano Edwin Black desvenda essa história no livro
Internal Combustion (“Combustão Interna”, sem tradução em português).
Indicada ao Pulitzer, o prêmio máximo do jornalismo, a obra mostra como
cartéis do transporte e oligarcas do petróleo se uniram a governos
ocidentais para abortar as tecnologias limpas e atrelar a humanidade à
era da fuligem.
Como o transporte mundial se tornou dependente de petróleo?
Temos de voltar ao fim do século 19, quando quase todos os carros eram
elétricos. É claro que na época eles não eram considerados veículos
alternativos, mas o resultado do monopólio de uma empresa chamada EVC
[sigla em inglês para Companhia de Veículos Elétricos], dona de táxis e
estações de recarga – o sujeito deixava o carro na estação, saía para
fazer compras e ao voltar a bateria estava cheia. A EVC era poderosa e
queria impedir firmas independentes de produzir carros a gasolina,
processando-as por infringir patentes. Mas, após anos de disputas
judiciais, a EVC resolveu se juntar às montadoras de carros a gasolina
que formavam a Alam [sigla para Associação de Fabricantes de Automóveis
Licenciados], criando um megamonopólio que controlava a fabricação
de bicicletas, baterias, carros elétricos e de combustão. Foi então que
resolveu-se abandonar a tecnologia elétrica em favor do motor de
combustão.
Por que eles tomaram essa decisão?
A EVC e a Alam achavam que o motor de combustão atrairia mais os homens.
Diziam que o automóvel elétrico era silencioso demais, parecia de
mulher – e eles queriam um “carro musculoso”. O plano era vender os
carros a combustão a um valor alto, só para os ricos. Até que um
fabricante de Detroit resolveu seguir seu próprio caminho. Era Henry
Ford, que planejava produzir carros a combustão baratos – o famoso
Modelo T. Ford teve de enfrentar anos de batalhas judiciais contra os
cartéis para conquistar o direito de produzir seus automóveis. Mas,
quando finalmente ganhou a guerra nos tribunais, percebeu que os EUA
estavam se tornando um lugar sujo com a fuligem gerada pelos motores a
gasolina. Houve então uma nova reviravolta: Ford se uniu ao cientista
Thomas Edison em um projeto para produção de um Modelo T elétrico
barato, acessível a todos.
Henry Ford |
O que impediu o sucesso do projeto de Ford e Edison?
Uma aparente sabotagem nas baterias. Elas saíam em boa condição da
fábrica de Edison, em Nova Jersey, mas não funcionavam quando chegavam à
Ford, em Detroit. Em 1914, quando tentava fazer uma bateria à prova de
manipulações, seus laboratórios foram destruídos por um misterioso
incêndio. Esse prejuízo se somou à 1a Guerra Mundial, quando o motor de
combustão se militarizou: ele movia tanques, aviões e barcos. Navios
movidos a petróleo eram muito mais rápidos que os movidos a carvão, por
exemplo. A guerra acabou representando um marco para a transição aos
derivados do petróleo.
O plano de Ford e Edison era fabricar carros particulares. Como o motor de combustão dominou também o transporte coletivo?
Em 1925, as vias elétricas transportavam 15 bilhões de passageiros por
ano nos EUA. Por volta de 1935, a General Motors liderou uma conspiração
com a empresa de caminhões Mack Truck, com a Firestone, a Standard Oil e
a Phillips Petroleum por meio de uma companhia que eles financiavam, a
National City Lines. A NCL comprava as empresas de trólebus e
imediatamente interrompia o serviço, desmontava as linhas, colocava
ônibus movidos a combustão no lugar e incendiava os elétricos para que
eles não fossem mais usados. Isso foi feito em 40 cidades americanas,
até que a GM fosse acusada de conspiração pelo governo americano e
finalmente declarada culpada por esse crime.
Alguns criticam o termo “conspiração” usado no livro, dizendo que houve apenas uma decisão de negócios.
Al Capone também tinha apenas negócios. Uso essa palavra porque a GM foi
acusada, julgada e condenada por conspiração. Se não usá-la, estarei
falseando a história.
Em seus livros anteriores, como IBM e o
Holocausto, você retratou um Henry Ford racista, que inclusive recebeu
medalha dos nazistas. Como foi retratá-lo agora como herói?
Ford sempre foi vilão nos meus livros. Mas neste ele é herói porque
enfoco o período antes da 1a Guerra Mundial. O Ford sobre o qual escrevi
foi um homem brilhante – antes de se tornar um dos maiores anti-semitas
da história dos EUA.
Naquela época, o debate sobre ecologia e
aquecimento global inexistiam. O petróleo era mais barato que a
eletricidade e parecia abundante. Pensando assim, a opção pelo óleo não
seria óbvia?
Não. Isso não é verdade. As pessoas se organizam em movimentos
ambientais desde o século 17. Eles começaram na época da exploração do
carvão e nunca pararam. No início do século 20, jornais mostravam que a
graxa e o óleo estavam contaminando os rios. Parte da razão pela qual
Henry Ford optou pela eletricidade foi para se livrar dos problemas
ambientais dos carros a gasolina. Em 1912, revistas já advertiam que era
preciso buscar fontes alternativas devido à escassez e aos crescentes
preços da gasolina.
O que o fez escrever sobre petróleo?
A petropolítica é a questão definidora de nossos tempos. Nos encontramos
no meio de uma guerra no Oriente Médio e sob a ameaça de outra ainda
mais ampla. Por causa do petróleo, estamos financiando os terroristas
que combatemos. Compramos óleo do Irã que, por meios indiretos, usa o
dinheiro da venda para financiar o programa atômico da Coréia do Norte. A
Coréia então fabrica o míssil No Dong e o reexporta ao Irã rebatizado
de Shahab. Também assistimos a uma grave mudança climática. Nossos
pulmões estão sendo destruídos com a poluição. Nos meus livros
anteriores, explorei um passado terrível esperando alcançar um futuro
precioso. Neste livro, exploro um futuro terrível esperando alcançar um
passado precioso.
Você diz que o álcool brasileiro seria
uma alternativa ao etanol de milho americano, que necessita de petróleo
para ser produzido. Isso não pode fazer com que alimentos deixem de ser
plantados para dar lugar à cana?
Sim, mas essa seria apenas uma solução de curto prazo. Se o Brasil
exportar para os EUA todo o álcool que produzir, isso será suficiente
para os americanos dirigirem apenas uma vez a cada duas semanas. Não
resolve o problema. O Brasil também pesquisa a produção de hidrogênio,
que seria uma solução mais duradoura e lidera o mundo em matéria de
independência de energia. Por quê? Porque depois do choque do petróleo
de 1973, quando Ford e GM nos davam 4x4 consumidoras de diesel e
gasolina, o Brasil procurava se tornar auto-suficiente em energia. Mas o
dinheiro é apenas a ponta do iceberg nessa meta. Veja as conseqüências
da petropolítica: quanto valem os mortos para que possamos usar máquinas
de cortar grama movidas a petróleo? A América Latina também poderia ser
parte da solução.
Como isso seria possível? Por exemplo, se as ilhas empobrecidas do
Caribe, que exportam narcóticos e fraude bancária, se tornassem
exportadoras de combustível. Elas poderiam suprir a Flórida com álcool
de cana. Claro que é uma solução parcial, mas é a disponível no momento.
Precisamos deixar o petróleo hoje, não daqui a 5 ou 10 anos. E, por
isso, precisamos recorrer a qualquer outra fonte que não o petróleo.
• É um dos pesos pesados do jornalismo investigativo nos EUA.
• Para escrever Internal Combustion, contou com uma equipe de 50 pesquisadores.
• Seu método de rastrear escândalos é simples. “Penso como um criminoso e atuo como um policial”, diz.
• Trabalha até 20 horas por dia, para desespero do médico particular dele.• Quando sobra tempo, escuta Gipsy Kings.
Para atender a uma ordem do governo da
Califórnia, montadoras lançam carros elétricos. Mas, de uma hora para
outra, os simpáticos automóveis começam a sumir sem deixar vestígios. O
caso, digno de Sherlock Holmes, é o mote do documentário Who Killed the
Electric Car? (“Quem Matou o Carro Elétrico?”).
A lua-de-mel ecológica durou alguns poucos anos na década de 1990, antes
de os fabricantes decidirem tirar os veículos de circulação – Chris
Paine, diretor do filme, teve de devolver o seu à GM. No documentário,
ele mostra a empresa esmagando sua frota elétrica num campo de provas no
deserto do Arizona.Afinal, quem matou o carro elétrico? Paine elabora
uma lista de suspeitos, que começa com os fabricantes – os modelos a
bateria poderiam colocar em risco o milionário comércio das peças de
reposição. A lista prossegue com as petroleiras, o lobby do hidrogênio e
até os consumidores. Muito marmanjo ajudou a propagar a idéia de que o
carro elétrico era silencioso e fresco demais para ser coisa de homem.
Fonte: Revista Super