Na literatura refletem-se as imagens tristes e risonhas da vida humana. Como todas as artes, ela está vinculada à sociedade em que se origina. Não há artistas "indiferentes" à realidade, pois de alguma forma, todos participam dos problemas vividos pela sociedade, apesar das diferenças de interesse e de classe social. E´através da literatura que podemos ir ao encontro de outras culturas passadas e presentes, conhecer o cotidiano de outras épocas e, também, compreender o nosso presente.
As manifestações socioculturais brasileiras são percebidas nas obras que analisamos neste estudo que ora realizamos. Obras como: "Cronistas do Descobrimento” em que os autores descrevem os hábitos e as riquezas naturais do Brasil de quinhentos anos atrás; "O Cortiço", onde se destaca o capitalismo como ponto de dominação e o dia-a-dia das pessoas é marcado pela ambição e exploração; Na obra "Fogo Morto", percebe-se a decadência dos engenhos de cana-de-açúcar em decorrência da modernização tecnológica, com a chegada das usinas; e "Sentimento do Mundo", em que Drummond critica a sociedade, destacando o medo das pessoas diante dos horrores da guerra. Nessas obras, cada autor procura, em épocas distintas, com características próprias, passar para os leitores o sabor do cotidiano de sua época.
Logo que os portugueses chegaram ao Brasil, impressionaram-se com a natureza, exaltando-a nas cartas de reconhecimento do território recém descoberto. O Brasil causou-lhes grande impacto. Ficaram estupefatos diante de tanta beleza de uma natureza virgem, divina, exuberante e muito atraente para olhos ávidos de riquezas. Encantaram-se com as pessoas que aqui habitavam - os índios, que eram seres exóticos, de cultura totalmente diferente da sua. Os “Cronistas do Descobrimento” descrevem uma natureza rica em pau-brasil, árvores frutíferas, diversidade de animais que não eram conhecidos pelo homem europeu e que despertou o interesse de conhecer cada vez mais o que era realmente o Brasil. Com isso, começou-se um processo de exploração, retirando da nossa terra o que ela possuía de melhor, através do intenso trabalho dos índios, que entregavam nossas riquezas em troca de utensílios sem valor. A admiração dos portugueses pelos índios transformou-se em ambição e avareza, levando-os a acabar com a cultura indígena, provocando assim a aculturação: o índio abandona seus hábitos e costumes para absorver a cultura européia imposta a eles.
E é esse domínio que nos persegue até os dias de hoje, que mudou as estruturas desse “gigante natural”, que nos trouxe a mistura de raças, que alterou o modo de vida, que fez surgir uma sociedade heterogênea de classes sociais distintas, que fez surgir um país de contrastes entre a riqueza e a miséria.
Esta realidade é também retratada em "O Cortiço" de Aluísio de Azevedo, onde os personagens revelam, ao longo da narrativa, as duas faces dessa sociedade em formação. Há uma miscigenação entre portugueses e brasileiros no tocante à alimentação, à música e costumes, fato que mostra os raros momentos de felicidade naquela comunidade que, amontoada, vivia em precárias condições de vida no cortiço.
"O Cortiço" retrata bem o cotidiano dos fins do século XIX, com seus sabores doces e amargos. Revela o lado violento da sociedade em busca de ascensão ao poder, bem como o lado bom da vida expresso nos prazeres, na alegria, no amor, na música, na sensualidade. É também uma obra que denuncia a exploração econômica, visto que os portugueses, donos dos cortiços, eram os únicos beneficiados.
Apesar de o governo mandar destruir todos os cortiços, na época, dizendo que eles estragavam a beleza da cidade, eles ainda persistem, só que com uma roupagem diferente. Os cortiços do final do século XIX são as favelas de agora, com uma pequena diferença: hoje, quem comanda "os cortiços" são os grandes traficantes e não mais os portugueses ambiciosos.
A inveja é uma característica marcante em "O Cortiço", principalmente na figuras de João Romão e Miranda, levando-os a machucar aqueles que os amavam. Em nome da cobiça, eles seriam capazes de se autodestruir, sentimento que se faz presente, também na nossa sociedade atual, onde, os políticos e grandes empresários, donos do poder e pessoas ambiciosas, em nome de uma ascensão econômica, não se importam em oprimir os menos favorecidos.
Se, desde os cronistas, a figura masculina e o poder de dominação prevalecem, em "Fogo Morto" não é diferente. O romance narra os conflitos advindos da decadência dos engenhos, cujos senhores – chefes de família – sentem-se envergonhados da nova condição de “pobres” que terão de enfrentar, preferindo, assim, manter a aparências.
O dia-a-dia das personagens de Fogo Morto não esta´ muito aquém do cotidiano da sociedade brasileira de hoje, onde o “ter” sobressai sobre o “ser”, fazendo com que as pessoas sustentem uma aparência que esta´ fora do seus padrões naturais de vida. Hoje, o operário continua sendo explorado, como o índio foi pelos portugueses na época do descobrimento, como os trabalhadores da pedreira do João Romão, como os escravos do Santa Fé, apenas com a diferença de que, hoje, ao contrario das épocas passadas, eles “podem” reivindicar seus direitos, mesmos que estes não sejam respeitados.
Com poemas melancólicos, tristes e abstratos, Carlos Drummond de Andrade traça a vida latente de uma sociedade perdida diante dos horrores da guerra. Da consciência de um mundo injusto e brutal, nasce o desejo de solidarizar-se, e o poeta abre mais espaço para o outro em sua poesia. Busca nas recordações da infância, da família, da cidade natal, um remédio para a falta de perspectivas futuras.
E é assim, de forma poética e, por que não dizer também, irônica, que Drummond nos mostra, em seus versos, o seu sentimento diante de um mundo tão complexo e cheio de tantas injustiças e degradações, num momento critico da história brasileira, em que a guerra havia devastado com as esperanças das pessoas que queriam mudar essa situação, mas se sentiam impossibilitadas.
E fácil entender Drummond. Basta realmente ser patriota. Difícil e´encontrar a solução para tanto negativismo humano, porque, afinal, se formos escrever a história do Brasil do final do segundo milênio, com certeza não seria uma narrativa muito diferente das criticas dos cronistas do descobrimento, nem de Aluízio de Azevedo e nem tampouco de Guimarães Rosa.
A geração que acaba de comemorar seus quinhentos anos de literatura brasileira, caracteriza-se pelo cepticismo. Hoje, de tanto ser explorado, o povo brasileiro está perdido, sem expectativas, assim como há cinqüenta anos, quando do lançamento de Sentimento do Mundo. Os jovens já não acreditam em seus governantes, não conseguem alcançar seus objetivos de trabalho, pois sempre encontram "uma pedra no meio do caminho" e se sentem impotentes ao tentar retirá-la. O sentimento da luta permanente, vindo através do índio, do africano e do português, povoou de fantasmas a alma brasileira. Ficamos atônitos ante o destino, carregado de medo, dores e tristezas. E´ essa a herança que recebemos do passado.
A história dos nossos valores e´, em grande parte, o espelho do combate entre a terra e o homem. Não se pode negar que a situação presente seja totalmente diversa da anterior, mas não é possível negar que o brasileiro começa a modificar-se. Fomos, até bem pouco tempo, uma nação de agricultores onde o fazendeiro era o patriarca. A existência política e econômica do país girava em torno dele. A vida do campo, onde se concentrava toda a riqueza nacional, refletia diretamente no cotidiano da vida urbana.
Hoje, porém, existem profundas modificações socioculturais no nosso país. O brasileiro da elite já não é mais o filho de fazendeiro, testemunha dos sofrimentos de uma raça escravizada assim como não é mais o exclusivo produto da mistura das três raças. Aqui chegaram também os italianos, os alemães, os orientais, os americanos e trouxeram as máquinas, interferindo na nossa economia. O Brasil industrializou-se.
A literatura é a própria história de cada coletividade. Pelas obras literárias brasileiras podemos viajar ao passado e constatar que nosso Brasil de hoje e´o espelho do Brasil do descobrimento, com outra roupagem, e´claro. A nossa natureza, antes rica e exuberante está sendo transformada em quase deserto, não mais pelos índios aculturados pelos portugueses, mas pela ganância de madeireiros inescrupulosos e fazendeiros irresponsáveis, com as queimadas e devastações... Há muitos "João Romão" na pele de empresários que exploram os trabalhadores, enriquecendo-se com a miséria dos outros... A decadência dos engenhos dá lugar à falência de indústrias, provocadas pelos diversos planos econômicos irresponsáveis, gerando ainda mais miséria... O medo da guerra, traduzido em versos por Drummond, é visto por todos através do pavor de sair às ruas por causa da violência, cada dia mais crescente...
É este o Cotidiano dos brasileiros, após meio século de história literária.