|
Ao sul do Ceará, em fértil vale, Dos cariris antiga moradia, Fica a cidade onde nasci um dia Do mês de março, é essencial que fale Que fui gestado estando o mundo em guerra, E que nasci no ano do armistício, Não era ainda equinócio, mas o solstício Estava no seu fim em nossa Terra. Criei-me livre como os passarinhos, Vaguei nos montes onde as brisas vagam, E elas me afagaram, como afagam As finas plumas que alcatifam os ninhos. Banhe-me nas nascentes e olhos d’água Que gorgolejavam entre rochas vivas, Alimentei-me das frutas nativas, Ignorando da canícula a frágua. Banhei-me no riacho cristalino Que todos por aí chamavam “rio” Mas que ante o verão virava um “fio” Fino filete de água; cristalino Quantos amigos tinham então ...e todos juntos íamos Caçar, pescar, brincávamos, corríamos, E na escola fazíamos a lição. Da mesma geração, de ruas circundantes, Filhos do que amigos de infância, Cresceram ali, casaram, e com jactância Contavam antigas loas, a nós, infantes. Éramos quase irmãos de peles diferentes, ...Não eram nossos pais antigos companheiros ? E nossos bisavós dali os pioneiros ? E ali nossos avós crianças como a gente ? Não tínhamos igual o amor pela terra ? Não tinham os folguedos origens iguais ? E as cantigas de roda não a faziam tais As moças da cidade, assim como as da serra ? Não sabíamos todos as mesmas orações ? Não eram os mesmos os hinos que cantávamos ? E em qualquer escola onde estudávamos Não eram os mesmos os livros e as lições ? No meu pensar ingênuo assim eu via, Tanta felicidade imaginária, Própria da inocente faixa etária, E do meio infantil onde vivia. Tirou-me do estágio onde estava Estacionária a alma de criança, O ler nos rosto a desesperança, E o cinzento da seca que chegava. O reflexo da mesma se fazia Presente, e a miséria era ampliada E mesmo onde jamais faltava nada, Assustadora, ela cruel batia. Em nossa casa, ela sorrateira Como quem nada quer, veio chegando, O pouco que restava dizimando, E nunca mais pudemos ir a feira. Pelas ruas os bandos de flagelados, Vagavam tristes, aleatoriamente Trazendo nos olhares a dor pungente Daqueles que se sentem condenados. As notícias dos saques perpetrados Por famintos em vilas e cidades, De reações e de barbaridades, E de homens feridos e trucidados Formaram-se então bando de varredores Limpando ruas a troco de comida Na ânsia de salvar a própria vida Se invertiam todos os valores. Eu era jovem, quase uma criança, A tudo observava, tudo via, Confesso hoje, que também sentia Ir-se de mim o resto de esperança Meu pai já não ganhava o sustento Para a imensa prole que gerara, Sua esperança ao certo esgotara E se minguara todo seu alento. Para aumentar a nossa desventura Nosso poço secou, ficou só lama, Bem cedo pai foi me tirar da cama E pôs-me lá a cavar a terra dura. Desceu-me numa corda, e eu raspava A lama, e na lata atada à corda De cima ele puxava até a borda E a pouca distância à despejava. Após limpar a lama, o barro duro Se expôs, e comecei a cava-lo, E no terrível afã de aprofunda-lo Também me revesti de barro puro. Depois de duas horas de labuta Meu pai tirou-me, pois chegava a hora De trabalhar, e ele ia embora, Abrir sua oficina, sua luta. No outro dia mal rompeu a aurora Pai novamente veio e acordou-me E novamente a velha corda atou-me Desceu-me ao poço, escuro aquela hora. Com vários dias de duro trabalho, O velho poço muito aprofundamos Grande foi o sucesso que logramos, Deu água farta e pura como orvalho. Andar nos brejos, observar a vida Que em milhões de formas fervilhava E a passarada que ali revoava A e vegetação tão colorida Era uma coisa que eu adorava, E conhecia bem a região, Já vira antes o brejo no verão, Sabia que a terra ali rachava. Mas juro; jamais antes vira nada Igual aquilo que agora via Uma terra crestada e que fedia De ossos e de carcaças atapetada. De vivo ali já não se via nada, Pois i próprio vergel era cinzento, Nada de verde havia, e um jumento Estertorava à beira da estrada. De verde só alguns mandacarus, Ou alguma outra árvore resistente A terra emanava um bafio quente E no céu só se viam os urubus Perambulei na terra devastada Cheguei ao rio que agora cortado Se dividia em poços isolados Cercados de imensa passarada. Segui pois margeando o leito seco Daquele rio onde sempre nadava A indiscritível mágoa me entalava E eu arfava em busca de ar fresco Num arrozal, na várzea que crestava Ao sol, um homem num esforço ingente Bombeava a água ainda existente De um poço do rio que secava. Ali vi a cena impressionante Que tocou minha alma de criança A e gravei de tal forma na lembrança Que hoje a revejo a cada instante. Pois em toda área humidificada Pela água que ele bombeava Uma multidão de aves disputava Para pousar sobre a terra molhada. Carcarás, gaviões, garças, socós, Avoantes, rolinhas, bem-te-vis, Marrecas, abrem-e-fecham, jurutis, Entre urubus, e vi também mocós. Carcarás eram os que mais haviam, E uma coisa chamou-me a atenção Embevecido, com um ramo na mão, Andei entre eles, que não me temiam. Parecia uma estória de Trancoso, E que a paz fôra ali decretada, Pois nem os bichos nem a passarada Me via como algo perigoso. Voltei ali algum tempo passado, Do arrozal já nada mais restava De luz ondulações da terra levantava, E estava todo o solo esturricado Muitas das aves que ali bebiam Dali não mais saíram, não voaram Suas ossadas brancas ali ficaram E em meio a outras tantas, lá jaziam. Depois da grande seca a decadência Nos atingiu de modo irreversível Embora nós fizéssemos o possível, Nunca mais conhecemos a abundância. Então meu pai talvez esperançoso Partiu de lá em busca de melhora, Preparou sua mala e foi embora, Nosso destino ficou nebuloso. Comecei a trabalhar e o ganhava, Entregava a mamãe (como era pouco!) Trabalhei noite e dia, como um louco Mas meu esforço pouco adiantava Só Juarez e eu ali ficamos, Além de mãe e mais quatro crianças, Como eram poucas nossas esperanças, Como foi dura a luta que enfrentamos. Pai só veio uma vez nos visitar ( com grosso bigode que jamais usara ) atravessando a praça, ao longe o avistara, achei-o parecido, corri a confirmar. Demorou pouco, viera a buscar-me, Mamãe não permitiu, voltou sozinho Atravessei o brejo, e lá no salgadinho Chorei desesperado por ele deixar-me Decidi-me a segui-lo, iria a Canindé, Iria lá fugido, já que não deixavam, Lembrei-me dos antigos, como viajavam E decidi que iria, ainda que fosse a pé. Olhei nos mapas os riscos das estradas, O traçado dos rios e riachos Admirei os antigos “cabras-machos” Que tangiam as mulas carregadas. Que venciam as léguas empoeiradas ( Isto meu próprio avô muito fizera ) Sem caminhões ou trens, naquela era Eram as coisas em comboios transportadas. Sonhei noites seguidas, que foragido Descia para o mar, seguindo o rio, Quanta aventura, quanto desafio, Ganhava do “Karl May” que havia lido. Mas foi de trem que acabei partindo E o destino traçou-me outro caminho, Não fui a Canindé, pai ficou lá sozinho E em Fortaleza fiquei residindo. Já mais de quatro décadas se passaram Mas as vívidas lembranças que me habitam Na memória e nos sonhos ressuscitam Os quadros que então meus olhos fitaram Mestre Egídio |