Os cientistas  batizaram a época geológica em que vivemos de Holoceno (algo como "totalmente  recente" em grego). Mas, ao menos no Brasil, ainda estamos na Era do Fóssil  Contrabandeado na Cueca.
Evidência recente do nosso atraso jurássico nesse  campo é a reportagem de Giuliana Miranda nesta Folha ("Site dos  EUA vende fóssil brasileiro por R$ 25,6 mil", Ciência, 20/ 6).  O título é autoexplicativo, o problema é crônico.
Há décadas que a  biodiversidade do passado brasileiro vai parar no exterior, adornando coleções  particulares e respeitados museus da Europa, dos EUA e do Japão. Os exemplares  mais belos e bem preservados são, de longe, os pterossauros (répteis voadores)  da chapada do Araripe, no Ceará e em Pernambuco.
Não por acaso, é do Araripe  a asa de R$ 25,6 mil oferecida pelo site americano e um crânio leiloado em  outubro passado pela Sotheby's, em Paris.
Embora os EUA e outros países  desenvolvidos permitam que fósseis sejam vendidos como mercadoria, o que  supostamente vale no Brasil é um decreto-lei de 1942, determinando que  paleobichos (e paleoplantas) são da União.
Os comerciantes estrangeiros  costumam argumentar que só vendem exemplares que teriam deixado o país antes de  1942 legalmente, portanto. Em certos casos, o argumento é desonesto, já que a  rocha na qual o fóssil está incrustado veio de uma camada do Araripe que só  passou a ser explorada após os anos 1940.
De qualquer maneira, a checagem e a  fiscalização estão muito aquém da limitada capacidade do DNPM (Departamento  Nacional de Produção Mineral), responsável por zelar pelo patrimônio  fóssil.
O leitor talvez se pergunte por qual razão deveria se preocupar com  bicho morto há milhões de anos só porque o dito cujo, por acaso, esticou as  canelas em território nacional.
Bem, em primeiro lugar, porque o (pouco)  dinheiro que chega às mãos de paleontólogos e biólogos evolutivos tupiniquins  vem do bolso desse mesmo leitor, e esse pessoal fica obrigado a consultar seu  objeto de estudo no exterior, quando poderia fazê-lo na sala ao lado na  faculdade.
Mas os verdadeiros prejudicados são dois grupos bem mais  desassistidos. A molecada que perde a chance de ver, num museu brasileiro com  acervo decente, a história da evolução se desenrolando diante de seus olhos; e  os pobres "peixeiros" do Araripe (assim chamados devido à abundância de peixes  fossilizados por lá), vendendo sua riqueza a preço de banana para atravessadores  criminosos.
Em vez de ser a meca dos apaixonados pela vida extinta e ganhar  dinheiro honesto com isso, o Araripe continua o lar de sertanejos pobres. É  outro microcosmo da natureza essencialmente autopredatória do jeitinho  brasileiro de explorar a própria riqueza.
 




