Enquanto Keith Richards se ocupava em viver uma vida cor-de-rosa à beira do paraíso (só que como o diabo gosta, vale lembrar), Bill Wyman tava afundado na maior bad. Britânico de cartilha, ele não conseguia adaptar-se a nova realidade. O baixista cara-de-cu pirava na batatinha por não encontrar os produtos que consumia na Inglaterra, especialmente chá e compotas. No meio, Charlie Watts, outro cavalheiro inglês, não parecia mais resignado com a situação. Mas sua vida melhorou mesmo depois que ocupou um quarto na mansão. A partir dali o cara começou a poupar tempo em suas jornadas diárias rumo às gravações, já que ele vivia em outro ponto da Riviera Francesa. De outro lado, Mick Taylor, um gurizão então com 21 anos que de uma hora pra outra se viu tocando na maior banda do Planeta, só aparece aos risos no documentário. O cabeludo havia entrado somente há dois anos na banda, por isso, ainda não tinha tirado muita grana no esquema (mesmo já tendo “Let it Bleed” no currículo), o que livrava a cara dele com a receita federal, ao contrário dos colegas. Ele caiu naquela de gaiato, e, na flor da idade, tava lá vivendo com os caras mais legais que já pisaram na Terra, enchendo a cara de trago e comendo cocaína num lugar maravilhoso e fértil em drogas.
Keith Richards e Bill Wyman
O que mais poderia ser melhor? Bem, talvez deixando de lado o fato de Taylor enfrentar arranca-rabos épicos com a patroa em casa e ainda a conviver com a atucanação de que Mick Jagger andava esfregando sua notória chonga imunda nela (coisa que teria chegado às vias de fato, conforme rezam as más línguas), o moleque tava aparentemente numa boa.
Outro cara que compactuava (e muito) com as percepções acerca da curtição de Taylor era o saxofonista Bobby Keys. Ele, que dá pra se considerar também um Stone, revela-se um tremendo fanfarrão no vídeo. O gordinho larga cada comentário… Impagável. Longe de qualquer sorte de explanações intelectuais e/ou definições eruditas/artísticas sobre o que rolou naquele período histórico, Keys, com o jeito grotão e texano de ser, limita-se a dizer o que todos já sabem, de forma reta e despretensiosa: “não dá pra fazer rock sem drogas e mulheres” (nota do redator: aí, garotada do emocore, pensem nisso!). Genial em sua simplicidade. Como as coisas têm que ser.
Mesmo assim, alguém tinha que trabalhar. E quem assumiu as rédeas da criatividade da banda foi Keith Richards. Dessa vez, Mick Jagger era apenas um coadjuvante de luxo. Interessante é que o guitarrista, mesmo chapado em tempo integral, tinha completa noção de sua responsabilidade – bem como sacava que sua relação com as drogas poderia ser uma pedra no caminho a qual ele não conseguiria rolar. “O problema não é o estilo de vida que se escolhe. Problema é quando o estilo escolhe você”, justificou na fita.
Ilustrando a situação, os takes de gravações no porão da casa de Richards mostram algumas sessões bem pouco produtivas. O estúdio ficava alocado num caminhão fora da mansão, com cabos percorrendo toda a casa como ligações nervosas conectadas a um cérebro insano. Os músicos estrategicamente se espalharam por dependências que lhes eram acusticamente favoráveis. Era Bill Wyman gravando no banheiro, Keith no porão, Bobby Keys no corredor, amplificadores atravancando o caminho… Isso, obviamente, encerrou com qualquer chance de a banda manter uma comunicação saudável. Andy Johns, o engenheiro de som de tal versão brit da “Canção do Exílio”, revela que o ritmo de trabalho era lento – uma única faixa poderia levar semanas para ser gravada. Segundo ele, havia vezes em que os Stones ficavam enfiados naquele porão por até três dias tocando rigorosamente merda nenhuma.
Porém, Johns conta que, quando Keith Richards parava tudo e dava uma encarada em Charlie Watts – que igualmente retribuía fuzilando-o com o olhar –, enquanto Bill Wyman segurava o baixo em um ângulo de 80 graus, “alguma coisa genial viria em seguida”, narra o engenheiro aos risos.
A qualquer momento, Keith (à esquerda) poderia levantar-se puto daquela cadeira e presentear o mundo com algo como “Shine a Light”
E assim seguiam-se sessions que se desenrolavam muitas vezes por todo o dia, em meio a um ambiente putamente insalubre, enfumaçado pelas espirais ondulares dos crivos que ardiam na boca dos músicos que, entre uma tragada e outra, bebericam Jack Daniels como água e desciam o braço nos instrumentos. E a umidade que imperava naquela atmosfera underground fazia as vezes de um inimigo íntimo que não dava trégua às ferramentas de trabalho: parecia impossível manter as guitarras afinadas. Era como nadar (bêbado) contra a corrente do mediterrâneo.
Falando em bebedeiras, a vida no andar de cima era uma festa. Qualquer malucaço que circulou pela Riviera Francesa naquele ano de 1971 teve acesso livre à mansão. O lugar era um entra-e-sai constante de figuras freaks. Bem, era simplesmente o lugar no mundo onde todos queriam estar. Entre os habituès do local, John Lennon, Eric Clapton e o escritor beat William Burroughs (que chegou a discutir a possibilidade de os Stones assinarem a trilha para uma versão cinematográfica de “O Almoço Nu”, coisa que infelizmente ficou só na balela) eram pintas que vira e mexe davam as caras por lá. Porém, afora essa gente “austera”, elegante e sincera, havia quem extrapolasse os limites da já enfraquecida boa fé hippie. Tanto é que, certa feita, alguém adentrou o porão e saiu com oito, veja bem, OITO guitarras sem ser visto, além de um sax de Bobby Keys. Aparentemente, algo estava fugindo do controle.
A mulher de Keith Richards à época, Anita Pallenberg, conta que o episódio mais emblemático daquele oba-oba – e que serviu para refletir sobre o total descontrole psíquico que reinava na casa – foi num dia em que se deparou com um maluco-beleza qualquer atirado num sofá da sala. Ao ver a moça adentrando o recinto, o cara não pensou duas vezes em ser bacana: sacou uma pedra de heroína do bolso e ofereceu gentilmente à anfitriã.
Anita Pallenberg e Keith Richards, em 1967
Bem, era hora de dar um basta naquilo, pensou Anita.
Ah, se não fossem minas caretas na vida dos músicos…
Na realidade, de careta Anita não tinha nada. Pelo contrário. A mina também entupiu afú os canos com as drogas que rolavam pela casa. Durante um tempo, porém, pouco antes da mansão passar a abrigar uma patota imensa de roqueiros pirados, sua equipe técnica e agregados junkies, a garota, ao lado de Keith e do filho Marlon, viveu dias que bem poderiam ter inspirado os versos da primeira estrofe de “We’re a Happy Family”, daqueles quatro esquizos nova-iorquinos que seis anos depois explodiriam a cultura bizarra da parte decadente de Manhattan mundo afora, conhecida como punk.
Contrariando a regra de que boêmios não acreditam em manhãs, Keith costumava levantar-se cedo. Vai ver porque isso dava a ele mais tempo para curtir amplamente a oferta de vadiagem existente em Villefranche-sur-Mer. O cara acendia um cigarro, saltava em seu conversível com o filho a tiracolo e saía para curtir o dia. Mesmo não sendo aquele o ambiente pedagogicamente adequado para uma criança ser criada, o moleque levou uma infância feliz naquele período. O despertar para as responsabilidades e interação lúdica com os adultos não faltaram: em pouco tempo, Marlon aprendeu a fechar baseados, coisa que lhe conferiu crédito com a “gente grande” da mansão. Bill Wyman, que havia largado o crivo lançando mão de um modus operandi de substituir as baforadas nicotinosas por aditivos psicotrópicos, certamente se afeiçou sobremaneira ao piá por conta disso.
Mas Anita, não contrariando a regra de que mulher mal comida não há cristão com bolas-de-aço que resista, começou a mostrar suas garras aos poucos. Italiana de pavio curtíssimo, a modelete (muitas vezes tocada pela piração mensal da pré-sangria inútil), passou a reclamar insistentemente do não-comparecimento do maridão. Por isso, não raro, Keith Richards atrasava bastante as sessões de gravação, já que travava 12 rounds de quebra-pau com a esposa com o volume no dez – para deleite dos músicos que aguardavam o guitarrista com os ouvidos ligados.
Entre tapas e beijos e odes. Ao saber da 2ª gravidez de Anita, Keith compôs “Happy” da varanda de frente para o paraíso
No entanto, conta a lenda de que um dia o ninho de amor do casal ardeu em fogo. Não, peraí, não vai achar que foi pelo fato dos dois terem dado a trepada do século. Rolou um sinistro mesmo. Certa feita a duplinha foi salva pelo motorista da casa, que percebeu um fumacê rastejando para fora do quarto pela fresta da porta e foi ver o que tava rolando. Ao entrar, deu de cara com Keith e Anita peladaços na cama em chamas, desmaiados e com os côcos completamente chapados.
Ah, a explicação? A garota havia pegado no sono com o inofensivo cigarrinho pós-foda na boca.
Burn, baby, burn.