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|  CONVERSA COM MEU PAI.  Lembras-te pai, do tempo das caçadas?  Sei que tu lembras, quem esqueceria?  Ansiosos dias antecediam o dia,  E a madrugada, longas madrugadas.  Nós as crianças, cordas desfiávamos,  Fazíamos do sisal as buchas de espingardas,  Bolinhas todas iguais, nas palmas enroladas,  E após tê-las bastantes, nos bornais guardávamos.  Na noite, a véspera, lembras pai ? Ainda...  Mãe ficava até tarde na cozinha  Preparando a farofa de galinha,  Que era o farnel...ei pai, tu lembras ainda?  A noite ainda escura, e a azafama,  Mãe sempre nestes dias, cedo estava em pé,  Fazia tapiocas, e o cheiro do café,  Era uma força extra a nos tirar da cama.  Quando além, no horizonte a barra mal surgia,  Espalhavam-se no ar os acordes plangentes,  De maviosa valsa em tons crescentes,  Como uma saudação ao novo dia.  Vinha lá da matriz, da torre encima,  Reverberar na urbe, o som possante  Da boca poderosa do alto-falante  Ao toque magistral do José Lima,  Ao matinal crepúsculo saíamos,  Eu era ao teu lado, pai, a pura euforia,  Que lindo para mim era o raiar do dia,  As cercas de aveloz ladeando o caminho,  Depois o vadear do rio salgadinho,  De mansa correnteza, e água tão gelada,  Que eu achava lindo, assim, de madrugada,  Gritando de alegria ao ver algum peixinho.  Chegando a algum lugar tranqüilo e aprazível,  Sentavas-te à sombra, e armados de espingardas,  Seguiam os manos em suas caçadas,  E eu por ser criança ficava contigo,  Gozando tua presença, a salvo do perigo,  Com a minha baladeira atirava pedrinhas,  Comia quando em vez, pedaços de galinhas,  Que tu me davas, pai, (como eras bom comigo)  Mas mesmo ali, tranqüilo e acomodado,  À tua moda tu também caçavas,  Com tiros infalíveis, fulminantes,  Fossem socós, rolinhas ou avoantes,  Que buscassem abrigo na ramada  Dentro do alcance de tua espingarda,  E eu iria buscá-las em instantes.  Hoje não há mais nada pai,  Hoje mais nada existe,  Se andasses por lá irias ficar triste,  A visão que se tem, olhando lá do horto,  E que na região tá tudo morto,  Como um lugar ermo e desolado,  Um campo de batalha arrasado,  Tá tudo morto! Pai; morto! morto!  E a tua garrucha, pai?  Como eu a achava bela...  Alimentava o sonho de atirar com ela  ... um dia numa caçada, talvez adivinhando  Aquele sonho meu, qu’eu vinha alimentando  Puseste-a em minhas mãos, eu tremi ansioso,  Tu me recomendaste: “seja cuidadoso!”  Nunca aponte a ninguém, ainda que desarmada,  Deve sempre supor que esteja carregada,  Lembra pai? lembra? lembra?  Foi lá nos “carás”, nas grandes pedras pretas,  Tua bela garrucha, como as escopetas,  Tinha o cano curto e reforçado,  Do lado da culatra ele era sextavado,  O guarda mato e o cão eram de bronze fundido,  Toda a coronha era jatobá polido.  Deitei na rocha negra e lisa, emborcado,  Ambas as mãos seguras firmemente  Na coronha da arma, e esta a frente  Apontava, certas concavidades que haviam,  Na rocha, cheias d’água, onde bebiam  Matando suas sedes, as vítimas inocentes  Matávamos sem dó nem piedade,  Sentíamos prazer nesta perversidade.  (Hoje não o faríamos, pai, estamos diferentes!)  Acossada pela sede uma avoante,  Sentou a beira d’água e num instante,  Detonei a garrucha... que estampido!  Pelo recuo violento fui impelido  Para trás, no declive escorregando  Fui entre duas rochas projetado,  Por ti e Mané Vicente fui tirado...  Lembras pai? podia Ter morrido!  E dos serões pai, lembra?  Eu lembro todo dia...  Se pudesse voltar eu voltaria,  Tinha prazer de trabalhar contigo  Tu eras realmente meu amigo,  Tu nunca me ofendeste ou maltratastes,  Exerço a profissão que me ensinaste  E os meus filhos a aprenderam comigo.  Comigo estás pai, embora não te veja,  Sinto tua presença benfazeja,  E por ti tenho um amor sem medida,  A minha vida pai, com tua vida,  É uma vida só entrelaçada  Em cada obra que eu faço é projetada  A tua arte, o âmago da minha arte,  Pois na íntegra de ti foi aprendida.  Ao fim da vida caso haja outra vida,  Espero encontrar-te a esperar-me,  Assim continuarás a ensinar-me  A tua experiência adquirida,  Te contarei as minhas aventuras,  Os risos, as alegrias e as agruras  Da minha própria vida bem vivida.  .................Benção, pai!  ........Também Deus te abençoe...  Se ti fiz algum mal, te peço, me perdoe,  .........................Até lá!  Teu filho, Egídio. | 
 
 
 
