Meu último dia de Vida
Hoje  é o meu último dia de vida. Acordei mais cedo e fui até o escritório  para encontrar uma foto de quando eu tinha 5 anos. Era de manhã, a casa  dos meus pai não tinha muros e eu me lembro de quando o rapaz que tirava  fotos sobre o cavalinho chegou. Olhando para  a foto, tentei lembrar-me de como era minha voz naquela época, o que eu  pensava e como eu imaginava que seria aos 25 anos. Vi a sombra do meu  pai no chão, e me senti grato por esta foto, por esta lembrança hoje.
Fui até a cozinha e preparei o café:  panquecas, servidas com queijo branco e requeijão. Odiava desse jeito, a  Vanessa era quem gostava, mas hoje era diferente. Calmamente posicionei  tudo sobre uma bandeja, as panquecas, o café com leite, um pedaço de  mamão e uma folha de caderno com a letra da música que cantei para ela  no dia do nosso casamento. Ela acordou e eu pude ver o paraíso, seu  sorriso. Meu coração acelerou, mas eu não poderia chorar, afinal de  contas ela não sabia de nada. Me mantive firme e servi o café. Quando  ela viu a letra e olhou pra mim ficou ainda mais difícil, então eu disse  que a amava e com o coração ardendo, a única coisa que pôde sair da  minha boca foi um pedido de perdão por alguns motivos que nem eu mesmo  sabia bem quais eram. Eu pedi perdão por nunca ter trocado os sifões das  pias do nosso apto – mesmo depois de 1 ano com ela reclamando sobre os  vazamentos. Pedi perdão por, mesmo com incansáveis pedidos, nunca ter  sentado ao computador com ela e ensinado-a a configurar o Itunes para  que ela pudesse carregar músicas novas em seu Ipod. Ela dizia, em meio a  uma meiguice que eu nunca havia visto, para eu não me preocupar, pois  eu poderia fazer tudo aquilo depois. Eu não poderia. Tantas foram as  brigas sem motivos, tantas foram as brigas com motivos, mas todas foram  brigas desnecessárias. Eu daria meu braço direito para voltar no tempo.
Após o café, eu disse a ela que iria  visitar meus pais. Eu sabia que isso seria dificil, mas inevitável. Ao  entrar pela porta da casa deles e ver meu pai deitado no sofá tocando  cavaquinho e minha mãe no sofá do canto, desabei. Perplexos, eles me  perguntavam o que estava acontecendo e eu precisei inventar uma  desculpa. Ao olhar para o meu pai meu coração doeu ainda mais. Eu tinha  tanta responsabilidade para com ele, eu tinha responsabilidade de  guiá-lo. Eu não tive tempo, eu negligênciei meu tempo. Então pedi perdão  por ele ter vendido a única coisa que o dava prazer na vida, um fusca  1973, para que algumas dívidas minhas pudessem ser pagas há alguns anos  atrás. Virei-me para minha mãe e pedi perdão pela minha ignorância e  estupidez ao analisar os sintomas de um mal estar que ela estava  sentindo, concluir que ela estava com a pressão baixa e aconselhá-la a  colocar um pouco de sal embaixo da língua. Quando na verdade ela estava  com a pressão altíssima e no dia seguinte sofreria um derrame. Era tudo o  que conseguia dizer, o resto eram soluços. E então a parte mais  difícil, algo que NUNCA havíamos dito um para o outro. Eu olhei-os nos  olhos e disse “eu amo vocês”. As palavras rasgaram meu coração numa  tentativa alucinada de compensar todo o tempo perdido, as lágrimas  tentavam amenizar a dor, mas era impossível. As chances haviam sido  perdidas, os dias haviam ficado para trás.
Saindo de lá, passei na casa do meu  melhor amigo. Agradeci por nunca ter desistido de mim, por nunca ter se  magoado, mesmo com todos os motivos do mundo. Houve uma época na minha  adolescência em que, mesmo sem ninguém saber, eu sofria de Transtorno  Obsessivo Compulsivo. Nem mesmo ele lembrava que tentou me ajudar e eu  não deixei, não me abri. Então pedi perdão novamente e em meio a risadas  retirei um sobretudo de uma sacola e o devolvi – 2 anos depois.
No caminho de volta parei no centro,  andei até encontrar um senhor que vivia nas ruas. Levei-o no meu carro  até um hotel e paguei um mês de estadia. Subi no quarto com ele e após  seu banho sentamos e conversamos, perguntei quem ele era e como ele  havia parado ali. Quantas vezes adiei tal atitude? Quantas vezes Deus me  incomodou ao ver alguém vivendo nas ruas e eu estava ocupado demais  pensando em trocar de carro? Um mês de estadia não mudaria a vida dele,  mas mudaria a minha.
Dirigi até o Aeroclube de campinas e me  matriculei no curso de piloto privado de avião. Eu não iria poder  assistir a nenhuma aula, mas passei a vida toda fazendo o que eu não  gostava e aquilo que eu achava que talvez pudesse gostar ficou sempre em  segundo plano. Mas não hoje. Hoje somente as coisas importantes teriam  espaço na minha vida. Com um sorriso estampado no rosto saí de lá  segurando o comprovante de matrícula.
Antes de voltar para casa eu tinha mais  um trabalho a fazer. Escolhi um lugar bonito, verde, com grama fofa e  silêncio. Então permaneci em oração por algumas horas, agradecendo a  Deus por todas as vezes que Ele não permitiu com que algo que eu queria  MUITO se concretizasse, pois desta maneira eu tinha certeza de que minha  vida não estava nas minhas mãos.
Ao voltar pra casa, com as poucas horas  que me restavam, pensei no que eu gostaria de comer. Qual era meu prato  preferido e como eu gostaria de comê-lo pela última vez. Após refletir  por alguns minutos cheguei a conclusão de que isto não era importante.  Lembrei de algo que alguém um dia me disse: “Fixemos os olhos não  naquilo que se vê, mas naquilo que não se vê, pois aquilo que se vê é  transitório, é passageiro, mas aquilo que não se vê… é eterno”. Então  troquei um banquete por pizza feita em casa com mussarela e ovos cozidos  – Deus como eu adorava aquilo. Sentei-me no sofá com a minha esposa,  nossa cachorrinha Tula e assistimos a vários episódios de Friends.  Eu estava feliz, estava satisfeito. Era um final de dia perfeito, era  um final de último dia perfeito. Tudo havia sido simples como Jesus nos  ensinou. E por isso eu estava feliz. Passei a vida toda procurando  felicidade na complexidade do mundo, quando na verdade o auge da  felicidade estava ali, na minha frente, gritando para que eu ouvisse,  acenando desesperadamente para chamar a minha atenção, mas eu preferia  fechar a porta.
Engraçado, no último dia sentimos o que é  importante de verdade. No último dia eu não quis ir almoçar num  restaurante japonês, eu não quis ir jantar no Outback, não quis ir andar  de Kart, jogar Paintball, ir no cinema ou me mudar para uma casa maior.  No último dia eu sentia saudades agonizantes do cachorro quente da  esquina da “tia” perto da casa dos meus pais. Passear com a Tula mais  uma vez seria o paraíso e ver minha esposa vestida com aquela calça de  pijama que eu odiava era a cena mais linda que eu me lembrava. Eu daria  meu braço direito para voltar no tempo.
Com o coração calmo e sereno adormeci. O dia terminou.
No dia seguinte, acordei meio sem saber  que horas eram ou onde eu estava. Só tinha certeza de uma coisa. Aquele,  seria o meu último dia de vida – de novo.
 
 
 
