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3 de mai. de 2011

APERJ impedia acesso a documentos históricos


APERJ impede acesso a documentos históricos

Cinco militantes e seus filhos menores foram trocados
pelo cônsul japonês Nobuo Okuchi


Rio de Janeiro - Por Carlos Fico



Em sua coluna em O Globo de 6 de março passado, Ancelmo Gois divulgou a informação, fornecida pelo diretor do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), Paulo Knauss de Mendonça, de que o acervo do extinto DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) guarda “fotos de uns 15 militantes contra a ditadura completamente nus, de frente e de costas”. A nota acrescenta que os militantes são todos “jovens da geração 1968, presos nos anos 1970”. O dilema que atormenta o diretor do APERJ consiste em saber se se trata de uma questão pública ou íntima.

O episódio ilustra a maneira equivocada através da qual o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro vem conduzindo o acesso aos documentos da repressão durante o regime militar. O pesquisador, jornalista, estudante ou cidadão que queira acessar tais documentos deve fazer uma solicitação ao APERJ. Na sequência, uma equipe – cuja composição é ignorada e não regulamentada por normas públicas – decidirá se tais documentos podem ser consultados. Os critérios utilizados por tal equipe são ignorados, embora se possa entrever, através da notícia divulgada por Ancelmo Gois, o tipo de preocupação que a orienta. É impossível deixar de registrar que a censura moral do regime militar também tinha na nudez um cavalo de batalha, usando-a como argumento para impedir a divulgação de fotos na imprensa. Aliás, não deixa de ser intrigante pensarmos em uma das reuniões desse grupo buscando averiguar se há “atentados à moral e aos bons costumes” nesses papéis. Lembro-me de que uma das dificuldades dos censores da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) do regime militar consistia, justamente, na falta de critérios objetivos para definir o que era um “atentado à moral”. No relatório de 1984 da DCDP, os censores reclamavam da necessidade de tomar decisões com base em “subjetivismos e impressões pessoais”.

A motivação moralista da censura do APERJ não é o principal problema. Reside na arrogância de seu comportamento o principal equívoco de seu procedimento. De fato, é completamente impensável que a sociedade atribua aos funcionários do APERJ a tarefa de decidir o que deve ou não deve ser considerado uma invasão da privacidade ou da intimidade das pessoas registradas nos documentos que a instituição guarda. Por que essa equipe tem semelhante poder? Por que o perfil ético-moral de seus membros – cujos traços agora vêm a público – deve presidir as decisões sobre o acesso aos documentos da repressão?

A pergunta do diretor do APERJ é capciosa. A foto, em si, não é uma questão pública ou íntima: é apenas uma foto que registra o propósito dos agentes da repressão de atestar que os militantes não haviam sofrido tortura (daí a nudez, para que ficasse visível a existência de possíveis ferimentos). Trata-se de informação histórica relevante, embora já conhecida, como esclarece outra nota da coluna de Ancelmo Gois publicada no dia seguinte, segundo a qual as fotos foram enviadas aos EUA quando do sequestro de diplomatas. Reter como inéditos documentos conhecidos não deixa de ser demonstrativo dessa vontade de tudo controlar que caracteriza o procedimento do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.

A madre Maurina, que morreu esta semana, foi torturada pelo delegado Fleury em 1969, levou o cardeal Arns à militância em prol dos direitos humanos e foi trocada pelo cônsul do Japão, Nobuo Okuchi, sequestrado em 1970. Na prisão, é possível que ela tenha sido violentada ou, pelo menos, bastante desrespeitada, conforme o depoimento de Rose Nogueira, mas, seguramente, teve de ficar despida na frente de seus algozes. Esse tipo de humilhação era uma constante entre os agentes da repressão. Segundo o general Adyr Fiúza de Castro, que comandou o DOI-CODI do Rio de Janeiro no período em pauta, tirar a roupa dos interrogados era uma prática adotada pela repressão para minar as “defesas do homem e da mulher”.

A exibição do desnudamento de alguém ofenderia, evidentemente, a privacidade dos atingidos, mas o registro histórico das informações mencionadas aqui não configura um atentado à imagem ou à privacidade de quem quer que seja.

A divulgação de fotos de pessoas nuas nessas condições é proibida por razões óbvias, mas não é preciso divulgá-las para que se tenha o registro da ocorrência. É perfeitamente possível descrever uma cena chocante sem ofender seus integrantes ou os leitores, tal como fizeram o dirigente do APERJ e o jornalista Ancelmo Gois.

Em outubro de 2004 o Correio Braziliense divulgou duas fotos que seriam do jornalista Vladimir Herzog, morto em 1975 nas dependências do II Exército, em São Paulo. As fotos mostravam um homem nu, apoiando a cabeça com as mãos em atitude que denotava sofrimento ou cansaço. Soube-se, depois, que não se tratava de Herzog, mas, possivelmente, do padre canadense Leopoldo d’Astous, pároco durante 31 anos na Igreja de São José Operário, em Brasília, que foi investigado pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) entre 1972 e 1974 por envolvimento com grupos de esquerda. Ninguém reclamou de invasão de privacidade, mas, certamente, a responsabilidade pela divulgação das fotos caberia ao jornal.

Em um seminário sobre a questão do acesso aos documentos da ditadura promovido pelo Arquivo Nacional em maio de 2010, dirigentes do APERJ externaram o temor de serem processados na justiça caso documentos desse tipo fossem divulgados por eles: “Não queremos perder nossas aposentadorias”, disseram. Salta aos olhos, entretanto, que se alguém se sentir ofendido em sua privacidade pelo uso que um terceiro fizer de documentos históricos, buscará incriminar aquele que fez o mau uso, e não o APERJ ou seus dirigentes. Durante o seminário, os mesmos dirigentes disseram que não podiam permitir que pessoas em busca de escândalos, especialmente jornalistas, tivessem acesso a esses documentos, diferentemente de “pesquisadores respeitáveis”, aos quais se podia franquear o acesso. Portanto, voltando a pensar nos procedimentos adotados pelo APERJ, não será uma surpresa descobrir que “pesquisadores respeitáveis” (condição na qual todos os integrantes da equipe certamente se supõem incluídos) já tenham tido acesso às fotos.

Os procedimentos adotados pelo APERJ nada têm de público, regular, rotineiro ou transparente. Repousam em uma visão ingenuamente moralista da sociedade e confundem conhecimento histórico com informação de alcova. Devem cessar.