Ronda
Quando se pensa no samba de São Paulo, não se deve esquecer de três nomes: Adoniran Barbosa, Germano Mathias e Paulo Vanzolini. Este último, que, além de sambista, é biólogo (ou herptólogo, especializado em cobras e lagartos), compôs um dos maiores clássicos da música brasileira: o samba-canção "Ronda", cujos versos, mais de 50 anos depois, quase todo mundo conhece... "De noite, eu rondo a cidade, a te procurar..."
Numa entrevista ao Jornal Folha de São Paulo, Vanzolini disse que muitas vezes, na boemia de São Paulo, via mulheres chegando na porta de um bar, olharem para dentro, certamente à procura de alguém, e ir embora em seguida. Noutra entrevista, ele contou a inspiração:
“A coisa mais engraçada é que o povo acha que Ronda é um hino a São Paulo, mas na verdade ela é sobre uma mulher da vida (risos). Naquela época, servindo o Exército, eu patrulhava o baixo meretrício. Uma noite, na saída, eu estava tomando um chopeali pela avenida São João, quando vi uma mulher abrindo a porta do bar e olhando para dentro. Imaginei que ela estava procurando o namorado. Ele pensava que era para fazer as pazes, mas o que ela queria era passar fogo nele (risos).”
O mais interessante é que a música foi escrita em 1945, mas gravada, quase por acaso, em 1953, por Inezita Barroso, quando Vanzolini contou a história numa entrevista no programa Roda Viva:
"Minha mulher é amiga da Inezita, e nós fomos para o Rio Fazer companhia para ela. Chegou no estúdio da gravação, o cara perguntou: 'E o lado B?' Nonguém tinha pensado em lado B. Aí Inezita diz: 'Eu sei muito da música, posso gravar o que vocês quiserem. Não, mas o autor tem que dar autorização'. O único autor que estava presente era eu; foi por isso que foi gravado Ronda"
A história da mulher que sai numa busca incansável pelo ser amado, num misto de amor e sede de vingança, pela frustração de não encontrar o homem (que só é encontrado no sonho...), e a esperança de vê-lo... de encontrá-lo feliz, jogando, bebendo, na companhia de outras mulheres, apenas para dar vazão ao sentimento de sangue e de vingança, numa espécie de expiação do amor...
Duas curiosidades adicionais...
Vanzolini diz que muitos japoneses pedem a música nos Karaokês, como... cante a música da "Honda"....
Caetano Veloso, quando compôs Sampa, faz uma homenagem a Ronda, que, para muitos, é um hino extraoficial de São Paulo. A análise está no blog do Bollog:
Enquanto Vinicius de Morais provocava os amigos, ao dizer que São Paulo era o túmulo do samba, Caetano iniciou sua linda homenagem à cidade de maior força econômica brasileira, enaltecendo seus mitos e seus símbolos. Ele começou SAMPA fazendo uma paráfrase musical de RONDA, do poeta e compositor Paulo Vanzolini (Ronda, que foi lindamente interpretada por Maria Betânia, irmã do poeta e cantor baiano).
Prova disso é que quando João Gilberto toca Sampa, ele sempre inicia com o último verso da criação inesquecível de Vanzolini: “Cenas de sangue num bar na avenida São João”, que musicalmente casa com perfeição com “Alguma coisa acontece no meu coração”. Durante a música, Caetano retomou esse artifício melódico para deixar claro que não foi uma construção feita por mero acaso…
A letra...
RONDA
De noite eu rondo a cidade
A lhe procurar, sem encontrar
No meio de olhares espio
Em todos os bares
Você não está...
Volto prá casa abatida
Desencantada da vida
O sonho, alegria me dá
Nele você está...
Ah! Se eu tivesse
Quem bem me quisesse
Esse alguém me diria
Desiste, essa busca é inútil
Eu não desistia ...
Porém com perfeita paciência
Volto a te buscar
Hei de encontrar
Bebendo com outras mulheres
Rolando dadinhos
Jogando bilhar...
E nesse dia então
Vai dar na primeira edição
Cena de sangue num bar
O vídeo na voz de João Gilberto...
Fontes:
" O melhor do Roda Viva -Cultura, organizado por Paulo Markun
Acalanto - De pai para filha. De Dorival para Nana Caymmi
Todos os filhos de Caymmi têm nomes que começam com a letra "D". Danilo, Dori e Dinahir. Mas, por causa de uma música composta por seu pai, até hoje ela é conhecida como "Nana". Nana Caymmi... e para ela foi feita uma linda canção de ninar... chamada Acalanto...
Os fatos que vou narrar aqui foram contados por Stella Caymmi, neta de Dorival, Filha de Nana, em dois livros: “Dorival Caymmi: o mar e o tempo (editora 34)”, e “O melhor de Nana Caymmi" (Ed. Irmãos Vitale).
Quando Nana Caymmi nasceu, em 29 de abril de 1941, Dorival vivia uma vida intensa de compromissos como cantor. Sua mãe, Stella Maris, cuidava mais de Nana, e, como boa cantora que era, ninava sua filha com músicas do cancioneiro nacional....
A letra é absolutamente confessional... Nana, de temperamento forte (que veio a se confirmar ao longo da vida) se recusava a dormir, pois já era tarde, e o pai Dorival, impressionado com o desgaste que Stella sofria para colocar Nana para dormir, compôs uma cantiga para fazer a mãe descansar.Dorival, com sua voz inconfundível, cantava baixinho junto ao berço para que a criança conciliasse o sono. Parte de uma antiga canção de ninar ( “Boi da cara preta”, cuja letra parece de assustar, mas sempre funciona com crianças....)...
Reza a lenda que, em 1952, Nana já com 11 anos, Caymmi, dando uma “canja” num aniversário de casamento, cantou “Acalanto”, e a filha do casal bocejou, ao que Caymmi respondera: “Essa é a intenção da música: causar sono”...
Em 1960, Dorivcal Caymmi iria gravar “Acalanto”, com participação de sua mulher Stella, que, não se sabe por qual razão, desistiu de cantar... coube a Aloysio de Oliveira, diretor artístico da Odeon, sugerir, então, que o dueto fosse feito com sua filha Nana, então com 18 anos...
Uma música de pai para filha, feita num momento de sono, mas com muito, muito amor.
Dedico a você, Bruninha....
É tão tarde
A manhã já vem
Todos dormem
A noite também
Só eu velo por você, meu bem
Dorme, anjo
O boi pega neném
Lá no céu deixam de cantar
Os anjinhos foram se deitar
Mamãezinha precisa descansar
Dorme, anjo
Papai vai te ninar
Boi, boi, boi
Boi da cara preta
Pega esta menina
Que tem medo de careta
Solidão que nada (feita depois de um beijo no aeroporto....)
Eu me divirto com a história de canções que surgem a partir de pequenos acontecimentos dos dia; músicas que viram verdadeiras limonadas a partir de um limão, isto é, um fragmento da criatividade que faz o caminho surgir a partir de pequenas coisas. Neste caso, me refiro à música "Solidão, que nada", uma música de George Israel que recebeu letra de Cazuza e Nilo Roméro, o "inspirador" da canção. o baixista Nilo Roméro contou a história da música, no livro Cazuza - Preciso dizer que te amo: todas as letras do poeta (Globo, 2001), que surgiu depois de um beijo de despedida num aeroporto...
"O meu nome no alto-falante do aeroporto interrompeu o beijo. Senhor Nilo Roméro, voo 427 para o Rio de janeiro, embarque imediato! Tchau, a gente se vê. Ah! E o telefone? Tem um papel? tenho. Cadê a caneta? Então tá. Saio correndo, subo as escadas e, finalmente, entro no avião. Me deparo então com todos os passageiros olhando para mim com aquela cara de reprovação. Caí na real. Procuro então com meu olhar os companheiros de banda, em busca de alguma cumplicidade. Estava atrasado, mas, afinal era por uma boa causa! Nào adiantou. Estava todo mundo puto., a fim de ir logo embora pra casa. Tudo bem, então vamos sentar. Mas cadê o meu lugar? Só tinha um lugarzinho no meio, e quem me conhece sabe que odeio viajar no meio. Sou meio claustrofóbico e gosto mesmo é de corredor. Sentado num das poltronas de corredor, observando tudo, estava Cazuza, uma das únicas pessoas de bom humor naquele avião. Ele sabia que eu detestava a poltrona do meio. 'Nilo Roméro' (ele tinha a mania de chamar as pessoas pelo nome e sobrenome). Trocamos. Na passagem, eu deixo cair um papel do bolso. cazuza pega, olha, me sacaneia e pronto. Ele iria chegar em casa e fazer uma de suas maravilhosas letras. Desta vez seria uma road song. Uma homenagem à vida na estrada, com todo seu glamour e vazio.
Cada aeroporto
É um nome num papel
Um novo rosto
Atrás do mesmo véu
É um nome num papel
Um novo rosto
Atrás do mesmo véu
Alguém me espera
E adivinha no céu
Que meu novo nome é
Um estranho que me quer
E adivinha no céu
Que meu novo nome é
Um estranho que me quer
E eu quero tudo
No próximo hotel
Por mar, por terra
Ou via Embratel
No próximo hotel
Por mar, por terra
Ou via Embratel
Ela é um satélite
E só quer me amar
Mas não há promessas, não
É só um novo lugar
E só quer me amar
Mas não há promessas, não
É só um novo lugar
Viver é bom
Nas curvas da estrada
Solidão, que nada
Viver é bom
Partida e chegada
Solidão, que nada
Nas curvas da estrada
Solidão, que nada
Viver é bom
Partida e chegada
Solidão, que nada
A música faz referência ao nome no papel, de um encontro em desencontro que se tem em cada aeroporto, em cada hotel, em cada viagem... esses amores que são deliciosos porque são fugidios, mas que também se tornam enfadonhos quando são repetitivos...
Estes são os amores fugazes da vida da estrada... o novo nome no aeroporto, o rosto novo, o véu antigo... uma pessoa estranha, um amor de retas perpendiculares, que se encontram num ponto da viagem, e depois se afastam para não mais se encontrar... e o refrão final é meio irônico... "Solidão, que nada... " ou, quem sabe, solidão...