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9 de mar. de 2012

A Enigmática Nitta-Jô


Ainda maior que a quantidade avassaladora de conhecimento ao nosso alcance nos dias de hoje, é imenso o volume de informação que desaparece no rastro da história, no curto espaço de duas ou três gerações... Faz alguns anos que sou fascinado por uma mulher, cuja voz não chegou-me senão através de arranhados acetatos do tempo dos gramofones, e que cantava canções trágicas de vício, miséria e loucura. Uma voz vinda do além que, nas madrugadas solitárias e silenciosas, transporta-me a um mundo com o qual sonhei, sem tê-lo realmente vivido. Ou como diria Fernando Pessoa em O Marinheiro, "...se tanto impressiona-me, talvez tenha-o mesmo vivido..."
A enigmática Nitta Jô... Já enterrei as unhas em todos os serviços de busca da Internet, e quando ergo as mãos é como se as retirasse da areia da praia que aos poucos se me escoasse pelos dedos, deixando em seu rastro nada além de minúsculas moléculas de sal faiscando ao sol. Às vezes me pergunto se ela teria realmente existido, ou não passe afinal de uma sombra fugaz dos pesadelos da minha primeira infância. E por que não, dos pesadelos pré-uterinos, intangíveis, do tempo em que eu vagava por lugar nenhum.
Nada se sabe dela além do seu nome verdadeiro, Jeanne Daflon, e o seu nome artístico às vezes escrito Nita-Jo (com um único 't'), às vezes Nitta-Jo, às vezes sem o hifen e às vezes Nitta Jô...
Ela teria nascido por volta de 1890, talvez mesmo um pouco antes, pois os seus primeiros passos ela os teria dado em Marselha, no Variétés-Casino em 1907, mas como em todas as gravações que fez, particularmente nos anos trinta, não há qualquer traço do sotaque da região, somos tentados, na busca por suas origens, a voltar os nossos olhos para outros horizontes, quem sabe Paris, ainda que o seu nome não seja mencionado em nenhum cartório da cidade. Conclusão: ela não nasceu em lugar nenhum.
Pelo tempo considerável que vivi em Paris, os "erres" dessa mulher mais parecem vir do leste distante, teria sido ela uma imigrante judia, uma prostituta polaca, ninguém jamais o saberá. Philippe Chauveau nos diz que ela estava no Ba-Ta-Clan em 1910 e depois, em 1931 ou 1932, no Alhambra. Entre essas duas datas, um grande vazio... No catálogo de 1914 dos discos Pathé há dezessete títulos (9 discos), mas fala-se de gravações que teriam sido feitas entre 1908 e 1912, algumas delas precedidas pelo anúncio "Por Nitta Jo do Alhambra." Sinal de que ela já lá estava, bem antes dos anos 30.
Fala-se aqui e ali de turnês: em Nova York (1926), na Espanha (1927), em Genebra, Milão, Roma, Constantinopla, Romênia, Egito, Turquia, Suíça... Existiriam, parece, do início e talvez de meados dos anos 20, alguns Odéons espanhóis, outras gravações feitas em Bucareste... O que é certo porém, é que no limiar dos anos 30 ela está em Paris e não é nenhuma desconhecida, pois participa dos filmes: Cendrillon de Paris de Jean Hémard (1930), contracenando com Alibert, Pauline Carton, Marguerite Moreno. La Fortune, do mesmo diretor (1931), estrelando o ainda jovem Claude Dauphin. Toine (1932) de René Gaveau com Andrex, Karl Ditan e Fortuné. E depois existem ao menos dois outros filmes onde ela teria trabalhado, que não constam do Internet Movie Database, Paradis d'Afrique e Mon oncle de Marseille.
Ela gravou igualmente 53 faixas para a Société Columbia entre 1930 e 1936. Estas são hoje praticamente tudo o que nos resta dela pois, depois disso, mais nada. Mas nada mesmo. Dizem que ela foi vista em uma foto tirada em uma festa em 1953, mas onde e em qual ocasião? Não se sabe. Conclusão: nascida em lugar nenhum, ela não está igualmente enterrada em parte alguma. As suas fotos são raríssimas, conhecem-se apenas umas três ou quatro. Quanto a seus filmes, faz um longo tempo que foram esquecidos.
La Folle

Vraiment ce soir que je suis belle,
Avec tous ces bijoux,
Et ces rubans et ces dentelles
Vont faire des jaloux

Je t'entends, je suis jeune fille,
Mon rêve est exaucé,
Un garçon de bonne famille
M'a fiancée...

Quoi? Vous voulez savoir mon nom?
Tous ces gamins vous le diront...

Ils m'appellent la Folle,
Je ne sais pas pourquoi,
Loin de moi tout s'envole,
Dès que l'on m'apperçoit

Par des dures paroles
Je suis montrée du doigt,
Ils m'appellent la Folle,
Je ne sais pas pourquoi

D'un roi j'ai toute la fortune,
Et avec ces millions,
J'ai fait un voyage à la lune,
Sur un grand papillon

J'ai glané toutes les étoiles,
J'en ai fait des diamants,
Et des nuages un grand voile,
Tout en argent...

Vous ne me reconnaissez pas...
Allons, grand seigneur... chapeau bas!

Ils m'appellent la Folle,
Je ne sais pas pourquoi,
Loin de moi tout s'envole,
Dès que l'on m'apperçoit

Par des dures paroles
Je suis montrée du doigt,
Ils m'appellent la Folle,
Je ne sais pas pourquoi

Mais, quelle est cette ombre qui passe?
Toute pleine de sang?
Je tremble, et tout mon corps se glace
Lui, c'est lui mon enfant

Lui, que j'ai chéri de tendresse
Lui, qu'un fatal destin
En fit pour plaire à sa maîtresse
Un assassin...!

Quand il monta le chapeau...
Maman!
Ce fût son dernier mot...

Par des dures paroles
Je suis montrée du doigt
On m'appelle la Folle
Maintenant je sais pourquoi...

A Louca

Deveras, esta noite como estou bela,
Com todas essas jóias,
E essas fitas e essas rendas
Vão deixar todos com inveja

Eu te ouço, eu sou moça,
Meu sonho está realizado,
Um rapaz de boa família
Tornou-se o meu noivo...

Quê? Você quer saber meu nome?
Todos esses moleques lhe dirão...

Eles me chamam a Louca,
Eu não sei porquê,
Para longe todos fogem,
Assim que me percebem

Com duras palavras,
Eu sou apontada com o dedo,
Eles me chamam a Louca,
Eu não sei porquê

De um rei tenho toda a fortuna
E com esses milhões
Eu fiz uma viagem à lua
Sobre uma grande borboleta

Eu catei todas as estrelas
Delas fiz diamantes,
E das nuvens um grande véu
Todo de prata...

Você não me reconhece...
Ora, grande Senhor... tire o chapéu!

Eles me chamam a Louca,
Eu não sei porquê,
Para longe todos fogem,
Assim que me percebem

Com duras palavras,
Eu sou apontada com o dedo,
Eles me chamam a Louca,
Eu não sei porquê

Mas que sombra é essa que passa?
Toda coberta de sangue?
Estou tremendo, e meu corpo está gelado
Este aí, é a minha criança

Ele, que eu adorei de ternura
Ele, de quem um fatal destino,
Fez para agradar à sua amante
Um assassino...!

Quando ele ergueu o chapéu...
Mamãe!
Foi a sua última palavra...

Com duras palavras,
Eu sou apontada com o dedo,
Chamam-me a Louca
Agora eu sei porquê...