País fica menos inteligente com a morte de Millôr Fernandes
Morre aos 88 anos o escritor, dramaturgo e desenhista, uma das mais criativas e críticas vozes de contestação à falta de liberdade no Brasil contemporâneo
Millôr Fernandes na verdade se chamava Milton Fernandes. Nascido em 23 de agosto de 1923, morreu na noite de terça-feira, aos 88 anos, mas como foi registrado em 27 de maio de 1924, tinha “oficialmente” 87. Essa identidade múltipla se traduziu também em seu trabalho: foi desenhista, poeta, jornalista, dramaturgo, humorista, tradutor e escritor. Em cada uma das funções deixou marca de qualidade tão impressionante como a capacidade de não levar a sério a pompa. Homem gregário, que participou de vários projetos coletivos, Millôr morreu em casa, na companhia de poucos familiares, de falência múltipla de órgãos e parada cardíaca. O escritor ficou internado por cinco meses na Casa de Saúde São José, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Em fevereiro, foi vítima de um AVC, do qual se recuperava. Criado sem os pais, que morreram quando era menino, Millôr sempre carregou traços de uma maturidade precoce: foi autodidata em todas as artes que exerceu e começou cedo na imprensa, aos 14 anos. A soma de liberdade com necessidade fez dele um homem que rompia com limites e não tinha medo de experimentar. Aos 19 anos, ingressa na revista O Cruzeiro, a mais importante da época, criando um estilo que levaria por toda a vida: a leitura crítica da realidade, a ironia, a erudição, o desenho carregado de ousadia e o virtuosismo epigramático. Foi um dos maiores frasistas da imprensa brasileira. Millôr trabalhou em vários jornais e revistas, entre eles O Globo, Veja e O Estado de S. Paulo, além de ter criado seu próprio veículo, O Pif-Paf, considerado um dos primeiros periódicos alternativos, que durou apenas oito números. A inspiração voltaria com O Pasquim, do qual participou desde os primeiros momentos ao lado de outros artistas que, como ele, exercitavam o desenho e o texto, como Jaguar e Ziraldo. O modelo marcou época pela irreverência e coragem em desafiar o regime militar, tanto em política como na área sensível do comportamento. Tudo que o aproximava do deboche, ainda que como método da crítica social, parecia se equilibrar no outro lado da criatividade do artista. Millôr foi um desenhista moderno, influenciado pelos sofisticados cartunistas americanos, mas que tinha traço autoral destacado, que fundia informação e uma falsa ingenuidade naif. No texto para a imprensa, sua verve era moralista, alegórica e paródica, trazendo elementos eruditos que se mesclavam ao dito exato e à capacidade de síntese. O teatro foi um dos territórios em que mais se destacou, como autor de dramas, comédias e musicais, além de importante trabalho como tradutor. Algumas de suas peças fazem parte da melhor dramaturgia brasileira do século 20, como É, Um elefante no caos e Liberdade, liberdade. Entre suas traduções destacam-se versões de Shakespeare (A megera domada, Hamlet e Rei Lear), às quais dotava de linguagem moderna e expressiva, elogiada por especialistas e atores. Traduziu ainda peças de Tchekov, Brecht, Ibsen, Racine, Molière, Pirandello, Harold Pinter, Samuel Beckett, Bernard Shaw, Edward Albee, Tennessee Williams e até tragédias e comédias gregas clássicas de Aristófanes e Sófocles. Como poeta, Millôr foi hábil em casar versos populares com formas mais tradicionais e dar dimensão popular ao hai-kai, poesia clássica japonesa com três versos e 17 sílabas. Nesse tipo de poema, o importante é a iluminação ou a capacidade de flagrar o sentido universal em um instante. Depois de Millôr, o hai-kai entrou em moda e se tornou a forma preferida de muitos jovens poetas, o que deixou às claras a diferença entre uma boa ideia e uma realização madura. Mesmo sem perder o humor, poesia para ele sempre foi coisa séria. O poeta Millôr, mesmo com vários livros publicados, ainda não foi suficientemente valorizado. Millôr Fernandes fez parte de uma geração que chegou à maturidade com um inimigo comum, a ditadura militar, e que dispunha de um singular instrumento de combate político, a arte. Com a censura à imprensa, a pressão sobre a universidade e fechamento das instâncias tradicionais de participação, a inteligência migrou para as ruas e para as casas de espetáculo. E para os bares, com o carioquismo que talvez seja o único cacoete de Millôr Fernandes, em sua autorreferência incontida. Como bom jornalista, em mais de 70 anos de imprensa, além de manter os generais na mira, não perdoou um presidente sequer, de Getúlio Vargas a Lula, passando por JK, Jango, Jânio, Sarney e FHC, em termos nem sempre elegantes. Mas nunca totalmente injustos. O escritor e desenhista soube captar as possibilidades do momento, incorporando um patrimônio pessoal de saber autodidata que deu distinção a seus trabalhos em meio à intensa produção do período. Com o passar do tempo, talvez cumprida a tarefa mais urgente de contestação, ele se viu isolado em paradoxo que ele mesmo descreveu certa vez: “Infelicidade: nascer com talento melódico numa época em que o pessoal só se interessa por percussão”. Ele soava sempre um tom acima da média. O teste da posteridade deverá ser justo com Millôr Fernandes. Sua obra é íntegra, criativa e vai além das mazelas do tempo e da inspiração militante ou jornalística. Quando não era engraçado, Millôr era inteligente demais.
Artistas lamentam a morte de Millôr Fernandes
Diversos artistas e personalidades da literatura e das artes visuais
lamentaram a morte de Millôr Fernandes. O escritor morreu ontem (dia
27), às 21h, em sua casa no bairro de Ipanema, no Rio de Janeiro.
Veja aqui alguns depoimentos: Laerte - cartunista (em depoimento a o G1): "Ele já estava doente. Minha vida cresceu na luz do Millôr. Fui apresentado a ele, fiquei emocionado. É uma das marcas mais importantes da cultura brasileira na questão do humor. Ele era uma entidade, já tem uma posição muito sólida e estável. Não existe uma área da cultura que ele não tenha visitado: teatro, literatura, música, artes plásticas. O cara era uma figura que se expandiu sobre todas as possibilidades da cultura. Politicamente, ele era uma pessoa conservadora. É meio ′abalante` você assistir à morte de dois grandes nomes do humor e da cultura, Chico e Millôr". Arnaldo Branco, cartunista (em depoimento a o G1) - "Ele é o maior nome do humor no Brasil. Começou com 13 anos no Cruzeiro. Não é só a maior carreira, mas também o maior tempo publicando coisas de qualidade. Para a minha geração, foi até mais impactante do que o Chico Anysio. É o Pelé do humor. Tinha muitos recursos, poderia trabalhar com trocadilho, fazer um humor mais sutil, algo de mais conteúdo... Fora o fato que traduzia Shakespeare. É realmente o maior. Uma grande perda para o humor e para as letras do Brasil. Basicamente, era o nosso maior satirista." Paulo Caruso, cartunista (em depoimento à Globo News) - "Foi um mestre mais importante da minha geração, o cara mais influente; Começou também garoto, trabalhando em redação. Teve que se virar sozinho muito cedo, ficou órfão de pai e mãe muito jovem. Desenvolveu uma agiliadde mental muito rapidamente. Sempre teve um trabalho que se aproximava do plástico, uma coisa sofisticadíssima. Podemos dizer que era um Deus pra gente. Sabia muito bem como ir pulando de uma coisa para outra. Queria deixar todo mundo corformado, porque de certa forma ele. Foi um mestre mais importante da minha geração, o cara mais influente, começou também garoto, trabalhando em redação. Teve que se virar sozinho muito cedo, ficou órfão de pai e mãe muito jovem. Desenvolveu uma agilidade mental muito rapidamente. Sempre teve um trabalho que se aproximava do plástico, uma coisa sofisticadíssima. Podemos dizer que era um deus pra gente. Sabia muito bem como ir pulando de uma coisa para outra. Queria deixar todo mundo corformado, porque de certa forma ele foi lá assistir ao Chico Anysio diretamente." Sergio Sant’anna, escritor (em depoimento à Globo News) - "O Maior gênio brasileiro. Era um filósofo. Como de uma mente humana podia sair coisas tão inteligentes, tão engraçadas e tão comprometidas com a liberdade. Era um artista político. As pessoas como o Millôr Fernandes deveriam durar pelo menos uns 200 anos". Zuenir Ventura, jornalista e escritor (em depoimento à Globo News) - "O Millôr conseguia esse milagre de misturar o traço e a palavra e introduzir a dimensão filosófica, não só fazia rir como fazia pensar. Perdemos o Chico Anysio e agora o Millôr. O Brasil perdeu a graça. Ele era absolutamente genial. É realmente muita perda. Ele era acessível, não era um hermético. Usava o humor para pensar. Uma perda terrível. Para o jornalismo, literatura, tradução, teatro, tudo. É sempre um choque e uma sensação de injustiça." Sérgio Augusto, escritor e jornalista (em depoimento à Globo News): "Eu o achava a inteligência mais fulgurante do Brasil. Nosso maior frasista, e de frases realmente lapidares." Arnaldo Jabor (em depoimento à Globo News): "Fico espantado que em poucos dias morreram dois dos maiores humoristas do Brasil, num país em que o humor não está com o mesmo vigor que tinha. O bom humorismo é o que eles faziam, que virava pelo avesso o comportamento brasileiro. E, pelo avesso do espelho, a gente via o país de uma maneira muito mais clara. Os dois têm o mérito de ter mostrado durante todos esse anos o lado risível da nossa vida." Alckmin e Kassab lamentam morte de Millôr Fernandes em notaFoto: Agência Estado
O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e o prefeito da
capital do Estado, Gilberto Kassab, lamentaram em nota a morte do
escritor Millôr Fernandes, ocorrida na noite da última terça-feira (27)
por falência múltipla dos órgãos.
"O Brasil perde o homem das fábulas e dos contos fabulosos. Millôr Fernandes era um mestre das palavras e das artes em todas as atividades que exercia, com humor cortante e crítica inteligente: jornalista, desenhista, tradutor, roteirista de cinema e dramaturgo. É com grande pesar que transmito meus sentimentos e orações a todos os seus fãs, amigos e familiares", diz a nota divulgada pelo governo do Estado. "Com a morte de Millôr Fernandes, o Brasil perde uma referência de humor refinado, criatividade e bagagem cultural. Sua vida foi um exemplo de retidão e princípios que ajudou muito na formação do pensamento democrático brasileiro", afirma a nota do prefeito.
Biografia
Millôr Fernandes nasceu no Rio de Janeiro, no dia 16 de agosto de 1923, contudo foi registrado em 27 de maio de 1924. Por isso, em diversos lugares, o ano de nascimento aparece como 1924. Perdeu o pai dois anos após seu nascimento e a mãe cerca de seis anos depois. "Tive a sensação da injustiça da vida e concluí que Deus em absoluto não existia", escreveu sobre a infância na capital carioca. Em 1938, deu início a sua carreira de jornalista, como repaginador da revista O Cruzeiro. No mesmo ano, escreveu o conto A Cigarra, ganhou um concurso da revista e foi promovido para o arquivo. Mais tarde, assinava a coluna Poste Escrito, sob o pseudônimo de Vão Gogo. Dirigiu também a revista em quadrinhos O Guri e Detetive, de contos policiais. Em 1940, começou a colaborar com com seção As garotas do Alceu, como colorista. Em 1942, fez sua primeira tradução literária, do romance A estirpe do dragão, da americana Pearl S.Buck. Em 1946, lançou Eva sem costela - Um livro em defesa do homem, sob o pseudônimo de Adão Júnior. No nao seguinte, sua participação na revista O Cruzeiro já atingia a marca de dez seções por semana. Em alta, encontrou-se com Walt Disney, Vinicius de Moraes, César Lates e Carmen Miranda nos Estados Unidos, em 1948. No ano seguinte, assinou seu primeiro roteiro para o cinema, com Modelo 19, filme que ganhou cinco prêmios Governador do Estado de São Paulo, entre eles Melhores diálogos para Millôr. Em 1951, lançou a revista Voga, que não fez sucesso. Em 1955, dividiu com o desenhista americano Saul Steinberg o primeiro lugar da Exposição Internacional do Museu da Caricatura de Buenos Aires, na Argentina. Nesse ano escreveu as peças Bonito como um Deus, Um elefante no caos, que lhe rendeu um prêmio de Melhor Autor pela Comissão Municipal de Teatro, e Pigmaleoa. Em 1962, na edição de 10 de março de O Cruzeiro, passou a assinar como Millôr. Em 1969, foi um dos fundadores do jornal O Pasquim. Um ano depois, deixa a revista e começa a trabalhar no jornal Correio da Manhã. Em 1974, lançou a revista Pif-Paf, que fechou em seu oitavo número, por problemas financeiros. No ano seguinte, escreveu para Fernanda Montenegro a peça É..., que se tornou o seu grande sucesso teatral. Em 1996, passou a colaborar com os jornais O Dia, O Estado de São Paulo e Correio Braziliense. Ao longo se sua carreira, escreveu mais de 30 livros em prosa, três de poesia, além de mais de quinze peças para teatro. Depois de colaborar com os principais jornais brasileiros, passou a escrever para a revista Veja em setembro de 2004. Ele deixou a revista em 2009. 'Millôr era o cérebro', diz co-fundador do Salão Internacional de Humor
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