Mídia sem máscara
As FARC conseguiram meter essa doutrina
leninista no “pré-acordo”, envolvendo-a em frases sibilinas, sem que os
“plenipotenciários” do governo tenha se dado conta de semelhante contrabando.
A maior debilidade do documento que os
meios de comunicação deram a conhecer sob o título de “acordo geral para o
término do conflito e a construção de uma paz estável e duradoura”, é que não
diz qual é o ardil conceptual sobre o qual se abririam as negociações.
Não diz que há valores, princípios, liberdades e instituições que não são nem
serão negociáveis.
Como se cala a respeito de tudo,
pode-se deduzir que as liberdades, princípios, valores e instituições
colombianas poderão ser negociados. Essa é, lamentavelmente, a filosofia desse
texto e o marco psicológico no qual, por descuido ou pressa, os que
representavam o governo Santos nos “contatos preliminares” com as FARC se
deixaram enredar.
Se se lê esse documento com atenção,
vê-se que não há nele pontos não-negociáveis. Tudo é negociável. É como se os
que subscreveram isso vissem a Colômbia como um imenso deserto onde não existe
nada e onde tudo está por construir, ou melhor, pactuar. É como se os
negociadores tivessem que partir do zero e avançar para a construção de uns
valores e umas instituições, pois nada do que os colombianos temos seria
estável e legítimo. Natural: o comunismo considera que séculos de capitalismo
não produziram nada de valor.
A menção da fórmula “direitos humanos”
nesse texto poderia dar a idéia contrária de que ao menos essa é a base
intocável, não negociável. Erro. Os direitos humanos só aparecem lá,
lamentavelmente, como algo que deve ser “promovido”, como uma perspectiva, não
como uma realidade, como algo já adquirido.
Esse texto nem sequer diz que a
democracia impera na Colômbia, pois esta, assegura o documento, deve ser
“ampliada” para que sirva de algo, sobretudo para que sirva de “base para a
paz”. O absurdo é total! Os que assinaram esse papel parecem ignorar que os
colombianos, graças à democracia, estão em paz com eles mesmos e que só uma
facção subversiva absolutamente minoritária, que trata de demolir essa
democracia, se opõe a essa paz desde há 50 ou mais anos. Essa facção armada se
auto-excluiu do pacto social. Esse documento aceita de cara fazer concessões de
princípio enormes a esse grupo. É a civilização capitulando ante a barbárie.
Os pontos
mais assombrosos
A agenda das negociações “de paz” teria seis temas,
mais um capítulo sobre as “regras de funcionamento” da negociação. O que
aparece nessa agenda é aterrador. Vejamos os temas principais e o que ocultam
certas frases.
O primeiro ponto fala de uma “política
de desenvolvimento agrário integral”. Por que o desenvolvimento agrário que
querem as FARC deve ser “integral”? Porque não é o que a Colômbia fez e faz.
Porque se trata de desenvolver outra agricultura, com outros atores, outros
métodos e outros objetivos. O que as FARC propõem é uma agricultura socialista,
onde os proprietários são eliminados como classe. Por isso deve ser “integral”.
Quer dizer, radical, extrema, violenta. Nesse texto, “integral” quer dizer
isso: que o desenvolvimento agrário deve ser acompanhado de expropriações,
invasões, vias de fato, matanças. É a luta de classes em todo seu esplendor, a
eliminação das classes sociais no campo. Essa agricultura fracassou em todos os
países onde foi aplicada.
O ponto dois diz que, após a assinatura
do acordo final, surgirão “novos movimentos de oposição” e que
a estes deve-se dar-lhes garantias e direitos para que exerçam sua oposição, e
para que tenham acesso aos meios de comunicação. Tal ênfase anuncia algo: que
uma parte das FARC se disfarçará de partido político e poderá penetrar ainda
mais em todas as esferas da sociedade e do Estado. Em particular, a fração
midiática deverá contar com espaços autônomos na televisão, no rádio e nos
jornais do país. Por isso o pré-acordo se abstém de dizer qual será o futuro
dos meios de comunicação privados e públicos, do pluralismo e da liberdade de
imprensa na Colômbia?
Em honra da “concórdia nacional”, vamos
para um modelo de imprensa única, como a de Cuba, na qual os capatazes, os
únicos com direito na mídia, serão os “novos movimentos” controlados pelas
FARC? Uma informação deformada e que projeta sobre a sociedade uma ideologia
caduca constitui um perigo para o futuro.
O ponto três suscita enorme
preocupação, pois fala do “abandono das armas” e não da entrega das
armas. A diferença é enorme! A idéia fixa das FARC é impor seu modelo de
sociedade às maiorias nacionais, sem que tenham que entregar ao Estado suas
armas, suas guaridas, suas redes clandestinas e seus cultivos ilícitos.
As FARC, diz o texto, “deixariam” as armas “de acordo
com os seus interesses”. Quer dizer, que continuarão armadas e com uma
série de braços legais incrustados na sociedade e no Estado, para miná-los
desde dentro. É o que as FARC chamam de “a combinação de todas as formas de
luta”, uma tenaz diabólica para destruir o que somos. Elas esperam que a
negociação “de paz” ratifique isso.
O texto diz que haverá “re-incorporação
das FARC à vida civil, no [aspecto] econômico, social e
político, de acordo com seus interesses”. Quer dizer que elas conservarão
seu nome, suas armas e seus interesses. E poderão intervir, ordenar, interferir
em todas as esferas da sociedade: no “[aspecto] econômico, social e político, -
de acordo com seus interesses”. Em outras palavras: o interesse particular das
FARC, minoritário, violento e detestável, poderá se impor sobre o interesse
geral.
Conclusão: as FARC conseguiram meter
essa doutrina leninista no “pré-acordo”, envolvendo-a em frases sibilinas, sem
que os “plenipotenciários” do governo tenha se dado conta de semelhante
contrabando. Esse detalhe mostra o que será a “negociação de paz” em Oslo e em
Havana.
O ponto 3c abre a possibilidade de um
pacto de impunidade, sob a forma de anistias, indultos, cessação de
procedimentos, a favor dos detidos e condenados por terrorismo, rebelião,
crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Esse ponto faz eco com o chamado
“marco jurídico para a paz”, que pretende deixar em liberdade toda sorte de
criminosos “políticos”, inclusive os autores de crimes de lesa-humanidade.
O ponto 3d fabrica um instrumento para
varrer com todos os que se oporão a isso. Eles serão catalogados como “organizações
criminosas” e “redes de apoio de organizações criminosas”,
e deverão ser “acabados”, como diz o pré-acordo. A menor crítica às
FARC, a seus agentes e a seus grupos e movimentos será catalogada como um “atentado
contra defensores de direitos humanos”, e deverá ser “acabado” (note-se
a conotação violenta dessa palavra) [1].
Quanto à Força Pública (Forças
Militares e Polícia Nacional), o documento é tremendamente cínico. Não menciona
a Força Pública mas assinala que ela poderá ser “reformada” e “ajustada”, quer
dizer, desmembrada, desmobilizada e transformada em força menor, diversa e
dividida. As Forças Militares ficarão sem doutrina, sem orientações, com um
mínimo de efetivos, equipamentos e material de guerra. Tudo isso em honra de
“construir a paz”. É o que significa esta frase”: “O Governo Nacional
revisará e fará as reformas e os ajustes institucionais necessários para fazer
frente aos desafios da construção da paz”. Tal perspectiva é tenebrosa. Na
Colômbia há uma lei: cada vez que a força pública é desatendida e perseguida, o
para-militarismo e a guerrilha crescem, e cada vez que a força pública é
reforçada, o para-militarismo e a guerrilha decrescem.
Em matéria de “vítimas”, as
únicas que o pré-acordo reconhece são as vítimas dos para-militares. Nisso o
texto é muito claro. O pré-acordo não diz nada acerca de como as FARC
“ressarcirão” suas vítimas. No ponto 3, sobre o “fim do conflito”, o item g
diz: “No marco do estabelecido no Ponto 5 (vítimas) deste acordo se
esclarecerá, entre outros, o fenômeno do para-militarismo”.
Quais são esses “outros”? As FARC e o
ELN, as Bacrim? Por que o pré-acordo não diz? Esse texto só aponta contra o
chamado “para-militarismo”, noção que, além disso, é imprecisa. As FARC também
são um movimento para-militar. É a organização para-militar mais antiga do país.
Porém, o pré-acordo não acredita que o para-militarismo comunista tenha por que
ressarcir suas inúmeras vítimas.
Outro ponto que chama a atenção é o que
consagra este princípio: não haverá entrega nem destruição de cultivos
ilícitos das FARC, nem de seus laboratórios de droga, depósitos
clandestinos, pistas de aterrissagem e outros elementos constitutivos do
narcotráfico, como contas bancárias e infra-estrutura imobiliária. Só há uma
frase sobre “substituição” de cultivos ilícitos. O pré-acordo é totalmente
frouxo em matéria de luta contra o tráfico de drogas na Colômbia.
Sobre o cessar fogo bilateral,
o ponto talvez mais importante da eventual negociação é muito curioso. No ponto
3 há, efetivamente, uma frase que diz: “a. Cessar fogo e hostilidades
bilateral e definitivo”. Entretanto, esse ponto não é desenvolvido em
nenhuma parte: nem nos parágrafos que seguem, nem no resto do documento. Na
realidade, não há nada mais sobre o cessar fogo bilateral. No ponto 3, “as
partes” tocaram outros pontos, como o “abandono de armas”, a luta para “acabar”
com o para-militarismo, a impunidade para com os detidos e condenados das FARC,
a redução das Forças Armadas (que se deriva do que diz o ponto g).
Porém, o ponto do cessar fogo bilateral
não é desenvolvido. Por que? Para mim, esse ponto não existe. Ou foi incluído
arbitrariamente e dessa curiosa maneira, sem precisá-lo, pois existiu acordo
sobre isso. Estamos, pois, ante outro enigma que afeta um tema central, como
disse em um artigo anterior. [2].
Farsas nas regras de funcionamento das
conversações
A eventual “transparência” das
conversações é uma piada: não haverá um só elemento de “transparência”: as
reuniões serão secretas e nem sequer as discussões poderão ser conhecidas pela
imprensa. O mesmo secretismo cobre os “informes periódicos” que alguém redigirá
(não diz quem redigirá essa notas). Esses textos também serão secretos.
Em troca, haverá um mecanismo (cujo
perfil não é precisado) para “dar a conhecer conjuntamente os avanços
da mesa”. O texto fala também de uma “estratégia de difusão eficaz”.
O problema é que a tal “difusão” não se sabe a quem chegará primeiro. O
documento não diz uma só palavra sobre a relação formal que haverá entre a mesa
e os meios de informação em geral. A imprensa em geral (e não os amigos das
FARC) terão acesso prioritário a tais “avanços” e “difusões”? Tais vazios nesse
ponto crucial não são para relegar os jornalistas e os meios de comunicação que
não engolem esse misterioso pacto?
Um ponto final: o recebimento de propostas está
concebido para tirar estabilidade às discussões. Qualquer pessoa ou qualquer
grupo poderá apresentar “propostas” (ante quem, não se sabe) e a mesa poderá
delegar “um terceiro” para que organize esse “espaço de participação”. Criam
assim uma caixa de correio (físico e eletrônico) aonde poderão chegar, sem
controle algum, exigências anônimas ou não. Esse obscuro mecanismo pode se
converter no instrumento para pressionar ou favorecer a um dos lados. Se os
negociadores do governo insistem em um ponto (algo que a opinião pública
ignora, pois o segredo da discussão impede a circulação de informação), as FARC
poderão fazer pressão através de suas redes para criticar, insultar, intimidar
esses negociadores. Assim se prepara um mecanismo para favorecer uma das
partes, impor outros temas, aplicar outras saídas, etc.
Notas:
[1] “Acabar” em espanhol, tem o mesmo
significado que em português: acabar, terminar. Entretanto, algumas vezes
aparece com a conotação de “exterminar”, “matar”, daí a observação do autor
como sendo uma palavra violenta.
[2] Ver http://www.pensamientocolombia.org/DebateNacional/colombia-hacia-un-cese-del-fuego-bilateral
[3] Para ilustrar este magnífico artigo,
recomenda-se assistir a esses dois curtos vídeos de uma palestra que Eduardo
Mackenzie, autor do artigo, ofereceu em Bogotá em 2009, no Seminário promovido
pela ONG colombiana “Un Millón de Voces” sob o título “Os
universitários têm a palavra”.
A eventual “transparência” das conversações é uma piada: não haverá um só elemento de “transparência”: as reuniões serão secretas e nem sequer as discussões poderão ser conhecidas pela imprensa. O mesmo secretismo cobre os “informes periódicos” que alguém redigirá (não diz quem redigirá essa notas). Esses textos também serão secretos.
Notas: