Existe uma luz no fim do túnel? Eu sinceramente espero que sim.
Afinal, faz semanas – meses, talvez – que estou perdido nesse labirinto escuro.
De todos os trabalhos que poderiam me dar nesta vida de jornalista, não deve
ter missão mais assombrosa do que essa: uma reportagem sobre Deus... e justo
numa revista científica!
Mecânica quântica e matemática do caos a gente até entende – com a
ajuda de um bom professor, claro. Deus é outra história. É o infinito
imponderável: aquilo que não dá para pensar e nem imaginar. É o infinito
inefável: aquilo que não dá para falar. Ou, pelo menos, essa é a maneira mais
segura de abordar – e encerrar – o assunto sem cair no ridículo nem ofender
ninguém.
Mas são os próprios cientistas que não param de falar em Deus. Os últimos 10
anos em especial viram nascer um novo filão literário dedicado a discutir o
Divino – aquele mesmo, um Criador Onipotente e Onisciente! – à luz da física e
da matemática, da química e da biologia.
O culpado, ao que tudo indica, é o físico inglês Stephen Hawking,
ocupante da cadeira que foi de Isaac Newton na ultraprestigiosa Universidade de
Cambridge e um dos principais teóricos dos buracos negros. Hawking, todo mundo
sabe, realizou um milagre digno do Grande Arquiteto Celestial ao vender mais de
10 milhões de cópias de um tratado de cosmologia e astrofísica, denso o
suficiente para fritar o cérebro do público leigo.
Publicado em 1988, Uma Breve História do Tempo tornou-se o mais
inesperado best-seller da história e até filme virou – não sem antes deixar no
ar, bem no parágrafo final, uma sedutora insinuação do casamento entre ciência
e religião: “Se chegarmos a uma teoria completa, com o tempo ela deveria ser
compreensível para todos e não só para um pequeno grupo de cientistas. Então,
toda a gente poderia tomar parte na discussão sobre por que nós e o Universo
existimos... Nesse momento, conheceríamos a mente de Deus”.
Aviso importante: Hawking não é um sujeito religioso e usa essa
idéia mais como uma frase de efeito, uma metáfora do conhecimento total do
Universo. Mesmo assim, não demorou para que outro cientista inglês do alto
escalão, o físico e matemático Paul Davies, extraísse todo um livro – e mais um
sucesso comercial de arromba! – levando ao pé da letra as palavras do colega.
Acolhido com uma chuva de prêmios destinados à divulgação científica, A Mente
de Deus (1992) passa em revista a história da ciência e da filosofia para
concluir, com convicção, que tudo no cosmo revela intenção e consciência.
Como o próprio Davies resumiu em uma entrevista: “Acredito que as
leis naturais são engenhosas e criativas, facilitando o desenvolvimento de
riqueza e de diversidade na natureza. A vida é apenas um aspecto disso. A
consciência é outro. Um ateu pode aceitar essas leis como um fato bruto, mas
para mim elas sugerem algo mais profundo e intencional”.
Estava dada a deixa para uma verdadeira enxurrada de físicos-teólogos atacar o assunto em dezenas de livros semelhantes. Dessa turma, o mais ativo é o também inglês John Polkinghorne, colega de Hawking no Departamento de Física de Cambridge, que – depois de 25 anos de carreira acadêmica brilhante – largou tudo para se ordenar pastor anglicano e escrever seus livros de “cristianismo quântico”.
“Eu não abandonei a física porque estava desiludido com ela, muito pelo
contrário: continuo acompanhando o assunto com o máximo interesse. Só não faço
mais pesquisa científica. Mas boa parte dos meus livros consiste em tentar
ensinar física quântica aos leigos”, afirma Polkinghorne. “Acredito que
precisamos de ambas as perspectivas, a científica e a religiosa, para
compreender esse mundo admirável em que vivemos.”
Alguma transformação radical deve ter ocorrido para que a crença
em Deus, assunto que havia se tornado tabu em laboratórios e universidades,
renascesse com tanta força. Cem anos atrás, a ciência se projetava como a
própria imagem do progresso e da civilização: decifrar todos os mistérios da
natureza era só uma questão de tempo. Era como se estivéssemos em um trem,
atravessando planícies ensolaradas, com uma visão cada vez mais ampla de tudo o
que nos cerca. Acreditávamos que esse trem – a ciência clássica – avançaria
para sempre por trilhos que não acabariam nunca, sob um sol que jamais deixaria
de brilhar.
Nós mesmos havíamos nos tornado os senhores do Universo. Ninguém
necessitava mais de fantasias como “providência divina”. Conceitos desse tipo –
e entidades sobrenaturais em geral – passaram a ser considerados ou uma
infantilização neurótica (Freud) ou um meio de as classes dominantes subjugarem
os pobres e oprimidos (Nietszche e Marx).
De repente, sumiram de vista as planícies, a luz do sol e os
próprios trilhos do trem. Perdemos a direção. Um terremoto, depois outro,
haviam nos atirado dentro de um túnel escuro, onde as velhas certezas se
convertiam cada vez mais em mistérios. O trem continuava em movimento, mas já
não sabíamos para onde e nem por quais paisagens. E esses dois cataclismas eram
justamente a física quântica e a matemática do caos.
“Ambas as teorias mostravam que existem imprevisibilidades
inevitáveis espalhadas por toda a natureza. Não acho que isso deva ser
interpretado como uma infeliz ignorância de nossa parte e sim como sinal de que
os processos físicos são muito mais abertos do que a mecânica de Newton
sugeria. Quando falo ‘abertos’, estou querendo dizer que existem outros
princípios causais em ação, acima e além das trocas de energia que a física
descreve”, afirma Polkinghorne.
Não é pouco o que o mundo deve ao gênio de Newton. Mais de 90% da
física que a gente aprende na escola ainda vem desse físico inglês do século XVII
– por sinal, religiosíssimo. Com ele, a descrição matemática da natureza
atingiu seu ponto máximo. Partindo da descoberta de um único princípio – a Lei
da Gravidade –, Newton praticamente criou toda uma nova disciplina, a dinâmica:
nada menos que as leis que governam todo o movimento dos corpos no Universo e
sua interação. Tornou-se possível prever medidas de tempo, espaço, peso com
exatidão inédita – e, assim, nasceu uma visão científica batizada de
“determinismo”.
Um século depois de Newton, o quadro que víamos pelas janelas de
nosso trem imaginário ficou ainda mais nítido graças ao físico escocês James
Clerk Maxwell. Com a gravidade, Newton revelara uma força que rege todo o
cosmo. Decifrando a maneira como a luz se propaga em ondas, Maxwell (um cristão
fervoroso!) mostrou outra força universal igualmente determinante: o
eletromagnetismo. O primeiro definia o comportamento da matéria, o segundo
explicava o da energia. Pronto: com esses dois “princípios causais”, como
Polkinghorne os chama acima, estava criada a ilusão de que todos os mecanismos
da natureza estavam desvendados.
Ricardo Galvão, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo – que se
diz “bastante religioso” – aponta onde nosso trem tomou um rumo inesperado. “O
determinismo nos fazia acreditar que, conhecendo as condições iniciais de um
evento ou sistema, poderíamos prever toda sua evolução futura”, afirma ele.
“Mas, ainda no final do século passado, o francês Henri Poincaré inaugurou a
matemática do caos, tocando no problema de que essas condições iniciais nunca
são bem conhecidas: sempre existe um grau de imprevisibilidade”. Aí, veio a
mecânica quântica e introduziu o conceito de que é impossível conhecer
simultaneamente a posição e o movimento de uma partícula. É o chamado Princípio
da Incerteza de Heisenberg, que derrubou de vez aquela atitude cientificista do
tipo ‘conhecemos tudo e podemos prever o futuro’.
Foi justamente o Princípio da Incerteza que fez Einstein soltar,
em protesto, sua frase mais famosa: “Deus não joga dados!” A imprevisibilidade
quântica era demais para ele aceitar. Einstein, como se sabe, falava o tempo
todo em Deus – até o dia em que o encostaram na parede e perguntaram se ele
acreditava mesmo no Dito Cujo.
“Acredito no Deus de Spinoza, que se revela na harmonia e na ordem
da natureza, não em um Deus que se preocupa com os destinos e as ações dos
seres humanos”, respondeu o criador da Teoria da Relatividade, citando o
filósofo holandês do século XVII para quem Deus e o Universo seriam a mesma
“substância”.
A definição de Einstein decepcionou muita gente – John
Polkinghorne, inclusive – por excluir o que costuma se chamar de “Deus
pessoal”. Assim, até um ateu convicto como Carl Sagan aceita a divindade.
“A
idéia de que Deus é um gigante barbudo de pele branca, sentado no céu, é
ridícula. Mas se, com esse conceito, você se referir a um conjunto de leis
físicas que regem o Universo, então claramente existe um Deus. Só que Ele é
emocionalmente frustrante: afinal, não faz muito sentido rezar para a lei da
gravidade!”, dizia Sagan.
Carl Sagan foi um dos raros cientistas a se declarar ateu. A grande maioria
prefere o termo “agnóstico”, criado em 1869 pelo biólogo inglês Thomas Huxley –
aquele que ganhou o apelido “Buldogue de Darwin”, por sua incansável defesa da
Teoria da Evolução, frente aos ataques do clero. Há uma grande diferença entre
as duas posições: dizer-se ateu é recusar a existência de um Deus, enquanto o
“agnosticismo” (“sem conhecimento”, em grego) significa admitir apenas que não
se sabe nada sobre dimensões sobrenaturais no Universo – e que o mais provável
é que seja impossível superar essa ignorância. É essa combinação exemplar de
humildade e diplomacia que define até hoje a postura de quase todos os
cientistas não-religiosos.
O vídeo seguinte, publicado no You Tube, é uma encenação de uma
suposta discussão da criança Albert (Einstein), com seu professor, acerca da
existência (ou não) de Deus. Muito bom.