Novas
pesquisas sugerem que o que cremos ser escolhas conscientes são decisões
automáticas tomadas pelo cérebro. O homem não seria, assim, mais do que um
computador de carne
Aretha Yarak
O todo-poderoso cérebro: neurocientistas defendem a tese de que o
órgão toma as decisões antes mesmo de pensarmos nelas (Thinkstock)
Saber se os homens são capazes de fazer
escolhas e eleger o seu caminho, ou se não passam de joguetes de alguma força
misteriosa, tem sido há séculos um dos grandes temas da filosofia e da
religião. De certa maneira, a primeira tese saiu vencedora no mundo moderno.
Vivemos no mundo de Cássio, um dos personagens da tragédia Júlio César, de William
Shakespeare. No começo da peça, o nobre Brutus teme que o povo aceite César
como rei, o que poria fim à República, o regime adotado por Roma desde tempos
imemoriais. Ele hesita, não sabe o que fazer. É quando Cássio procura induzi-lo
à ação. Seu discurso contém a mais célebre defesa do livre-arbítrio encontrada
nos livros. “Há momentos”, diz ele, “em que os homens são donos de seu fado.
Não é dos astros, caro Brutus, a culpa, mas de nós mesmos, se nos rebaixamos ao
papel de instrumentos.”
Como nem sempre é o caso com os temas
filosóficos, a crença no livre-arbítrio tem reflexos bastante concretos no
“mundo real”. A maneira como a lei atribui responsabilidade às pessoas ou pune
criminosos, por exemplo, depende da ideia de que somos livres para tomar
decisões, e portanto devemos responder por elas. Mas a vitória do
livre-arbítrio nunca foi completa. Nunca deixaram de existir aqueles que
acreditam que o destino está escrito nas estrelas, é ditado por Deus, pelos
instintos, ou pelos condicionamentos sociais. Recentemente, o exército dos deterministas
– para usar uma palavra que os engloba – ganhou um reforço de peso: o dos
neurocientistas. Eles são enfáticos: o livre-arbítrio não é mais que uma
ilusão. E dizem isso munidos de um vasto arsenal de dados, colhidos por meio de
testes que monitoram o cérebro em tempo real. O que muda se de fato for assim?
Mais rápido que o pensamento
— Experimentos que vêm sendo
realizados por cientistas há anos conseguiram mapear a existência de atividade
cerebral antes que a pessoa tivesse consciência do que iria fazer. Ou seja, o
cérebro já sabia o que seria feito, mas a pessoa ainda não. Seríamos como
computadores de carne – e nossa consciência, não mais do que a tela do monitor.
Um dos primeiros trabalhos que ajudaram a colocar o livre-arbítrio em suspensão
foi realizado em 2008. O psicólogo Benjamin Libet, em um experimento hoje
considerado clássico, mostrou que uma região do cérebro envolvida em coordenar
a atividade motora apresentava atividade elétrica uma fração de segundos antes
dos voluntários tomarem uma decisão – no caso, apertar um botão. Estudos
posteriores corroboraram a tese de Libet, de que a atividade cerebral precede e
determina uma escolha consciente.
Um deles foi publicado no periódico
científico PLoS ONE,
em junho de 2011, com resultados impactantes. O pesquisador Stefan Bode e sua
equipe realizaram exames de ressonância magnética em 12 voluntários, todos
entre 22 e 29 anos de idade. Assim como o experimento de Libet, a tarefa era
apertar um botão, com a mão direita ou a esquerda. Resultado: os pesquisadores
conseguiram prever qual seria a decisão tomada pelos voluntários sete segundos
antes d eeles tomarem consciência do que faziam.
Biblioteca
Who’s in Charge? Free Will and the Science
of the Brain
Reprodução
O pai da neurociência cognitiva apresenta argumentos contra o
senso comum de que somos guiados pelo livre-arbítrio. Para Gazzaniga, a mente é
gerada pelo cérebro, que guiado pelo determinismo biológico define quem nós
somos.
Autor: Michael S. Gazzaniga
Editora: Ecco
Editora: Ecco
Nesses sete segundos entre o ato e a
consciência dele, foi possível registrar atividade elétrica no córtex
polo-frontal — área ainda pouco conhecida pela medicina, relacionada ao manejo
de múltiplas tarefas. Em seguida, a atividade elétrica foi direcionada para o
córtex parietal, uma região de integração sensorial. A pesquisa não foi a
primeira a usar ressonância magnética para investigar o livre-arbítrio no
cérebro. Nunca, no entanto, havia sido encontrada uma diferença tão grande
entre a atividade cerebral e o ato consciente.
Patrick Haggard, pesquisador do Instituto de
Neurociência Cognitiva e do Departamento de Psicologia da Universidade College
London, na Inglaterra, cita experimentos que comprovam, segundo ele, que o
sentimento de querer algo acontece após (e não antes) de uma atividade elétrica
no cérebro.
“Neurocirurgiões usaram um eletrodo para
estimular um determinado local da área motora do cérebro. Como consequência, o
paciente manifestou em seguida o desejo de levantar a mão”, disse Haggard em
entrevista ao site de VEJA. “Isso evidencia que já existe atividade cerebral
antes de qualquer decisão que a gente tome, seja ela motora ou sentimental.”
O psicólogo Jonathan Haidt, da Universidade da
Vírginia, nos Estados Unidos, demonstrou que grande parte dos julgamentos
morais também é feito de maneira automática, com influência direta de fortes
sentimentos associados a certo e errado. Não há racionalização. Segundo o
pesquisador, certas escolhas morais – como a de rejeitar o incesto – foram
selecionadas pela evolução, porque funcionou em diversas situações para evitar
descendentes menos saudáveis pela expressão de genes recessivos. É algo inato
e, por isso, comum e universal a todas as culturas. Para a neurociência, é mais
um dos exemplos de como o cérebro traz à tona algo que aprendeu para conservar
a espécie.
O determinismo pela História
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386: Agostinho de Hipona
Nos três volumes da obra De
Libero Arbitrio (Sobre o livre-arbítrio), Santo Agostinho
rebate o maniqueísmo, teoria que defende que o mundo é dividido entre bem e
mal. Defensor ferrenho do livre-arbítrio após sua conversão ao cristianismo,
Agostinho acreditava que o mal era fruto da liberdade humana mal utilizada.
Como Deus havia criado o homem livre para fazer suas próprias escolhas, cabe a
ele agir de forma consciente e escolher entre o bem e o mal.
A mente como produto do cérebro — Como o cérebro já se encarregou de decidir o que fazer – e o
ato está feito —, é preciso contextualizar a situação. É aí que entra a nossa
consciência. Ela também é um produto da atividade cerebral, que surge para dar
coerência às nossas ações no mundo. O cérebro toma a decisão por conta própria
e ainda convence seu ‘dono’ que o responsável foi ele.
Em outras palavras: quando você para, pensa e
toma decisões pontuais, tem a sensação de que um eu consciente e racional,
separado do cérebro, segura as rédeas de sua vida. Mas para cientistas como
Michael Gazzaniga, coordenador do Centro para o Estudo da Mente da Universidade
da Califórnia e um dos maiores expoentes da neurociência na atualidade, não
existe essa diferenciação. Segundo ele, somos um só: o que é cérebro também é
mente. A sensação de que existe um eu, que habita e controla o corpo, é apenas
o resultado da atividade cerebral que nos engana. “Não há nenhum fantasma na
máquina, nenhum material secreto que é você”, diz Gazzaniga, que, em seu mais
recente livro, Who’s in
Charge – Free Will and the Science of the Brain (Quem está no
comando – livre-arbítrio e a ciência do cérebro, sem edição em português),
esmiúça a mecânica cerebral das decisões. (continue
lendo a reportagem)
Michio Kaku, um dos principais
físicos da atualidade, explica o livre-arbítrio do ponto de vista da física:
Segundo Gazzaniga, o cérebro humano fabula o tempo todo. A
invenção de pequenas histórias para explicar nossas escolhas seria uma maneira
sagaz de estruturar nossa experiência cotidiana. Essa estrutura narrativa,
segundo Patrick Haggard, tem um significado importante na evolução humana.
“Criar histórias sobre as nossas ações pode ser
útil para quando nos depararmos com situações similares no futuro. É assim que
iremos decidir como agir, relembrando resultados anteriores”, diz. Ou seja,
funcionamos na base do acerto e do erro, e da cópia do comportamento de pessoas
próximas – principalmente nossos familiares. “Por isso a educação das crianças
é tão importante. É um momento em que o cérebro absorve uma grande carga de
informações e está sendo moldado, criando parâmetros para saber como se portar,
como viver em sociedade.” (continue
lendo a reportagem)
Steven Pinker, psicólogo da
Universidade de Harvard e autor do livro Como a Mente Funciona, fala sobre o
livre-arbítrio:
Dúvidas — Em artigo
publicado no periódico Advances
in Cognitive Psychology, o pesquisador W. R. Klemm coloca em xeque
a metodologia usada em diversos dos experimentos recentes da neurociência.
Segundo Klemm, que é professor na Universidade do Texas e autor do livro Atoms of Mind. The ‘Ghost in the
Machine’ Materializes (Átomos da mente. O fantasma da máquina
se materializa, sem edição no Brasil) alguns estudos sugerem que não é possível
medir com precisão o tempo entre o estímulo cerebral e o ato em si. O que
poderia colocar abaixo toda a tese da turma de Gazzaniga.
O argumento principal do pesquisador, no entanto, recai sobre a
generalização dos testes. “Não é porque algumas escolhas são feitas antes da
consciência em uma tarefa, que temos a prova de que toda a vida mental é
governada desta maneira”, escreve no artigo. Klemm defende ainda a tese de que
atividades mais complexas do que apertar um botão ou reconhecer uma imagem devem
ser feitas de maneiras muito mais complexas. “Os experimentos feitos são muito
limitados.”
Ainda que as pesquisas estejam corretas, os próprios
neurocientistas reconhecem que a ideia de um mundo sem livre-arbítrio provoca
estranhamento. Eles se esforçam, sobretudo, para conciliar sua teoria com o
problema da responsabilidade pessoal. “Mesmo que a gente viva em um universo
determinista, devemos todos ser responsáveis por nossas ações”, afirma
Gazzaniga. “A estrutura social entraria em caos se a partir de hoje qualquer um
pudesse matar ou roubar, com base no argumento simplista de ‘meu cérebro mandou
fazer isso’.”
Para o cientista cognitivo Steven Pinker, a solução talvez seja
manter a ciência e moralidade como dois reinos separados. “Creio que ciência e
ética são dois sistemas isolados de que as mesmas entidades fazem uso, assim
como pôquer e bridge são dois jogos diferentes que usam o mesmo baralho”,
escreve ele no livro Como
a Mente Funciona. “O livre-arbítrio é uma idealização que torna
possível o jogo da ética.”
Continuariamos, assim, a viver no mundo descrito por Cássio
em Júlio César.
“Há momentos em que os homens são donos de seu fado”, diz ele. Neurocientistas
como Pinker estão prontos a concordar com isso – desde que se entenda o
livre-arbítrio como uma ilusão necessária para o jogo das leis e da ética – e
desde que se ponha o cérebro o lugar dos astros, como o grande condutor de
nossos atos.
Emoção x Razão
Em seu recente livro Thinking,
Fast and Slow (Pensando, rápido e devagar, com edição em
português prevista para o segundo semestre de 2012), o ganhador do prêmio Nobel
de economia de 2002, Daniel Kahneman, defende a tese de que grande parte das
nossas decisões são puramente emocionais. Mesmo quando um pessoa acredita que
está racionalizando, e que faz um determinado investimento baseado em dados,
está, na verdade, agindo pela emoção.
Isso explica por que as pessoas criam empatia por um político
apenas pela sua fisionomia ou porque professores tendem a dar melhores notas a
alunos que já se destacam. Kahneman ainda discorre sobre a substituição do
problema, mecanismo pelo qual criamos opiniões intuitivas sobre assuntos
complexos. Quando alguém lhe pergunta, por exemplo: “Quanto você doaria para
salvar uma espécie ameaçada?”, a pergunta que você responde é “Quão emotivo eu
fico quando penso em golfinhos ameaçados?”
Logo abaixo estão dois testes propostos por Kahneman. Segundo a
tese do Nobel, a tendência é que você responda às perguntas motivado pela
intuição e pelos estereótipos — deixando de lado a pura racionalidade.
1) Linda é uma mulher de 31 anos, solteira, e muito inteligente.
Ela é graduada em filosofia. Enquanto estudante, ela se envolveu profundamente
com assuntos como discriminação e injustiça social, e participou de
demonstrações antinucleares. Qual a afirmativa correta?
a) Linda é caixa de banco
b) Linda é uma caixa de banco e participa ativamente do movimento feminista
Solução: Nas respostas de todos os grupos avaliados por Kahenaman,
houve um consenso: quase 90% dos participantes colocaram a opção caixa de banco
e feminista com altos índices de probabilidade. Mas a probabilidade de que
Linda seja uma caixa feminista é menor do que a de ser apenas uma caixa de
banco. Aqui, fica estabelecido um conflito entre a intuição de
representatividade e a lógica de probabilidade. Pela lógica (e não a intuição e
o estereótipo), Linda seria apenas uma caixa de banco.
2) Quantos encontros amorosos você teve mês passado?
a) 1 – 3
b) 3 – 5
c) 0
Numa escala de 1 a 5, o quão feliz você está se sentindo esses
dias (sendo 5 o mais feliz)?
a) 1
b) 2
c) 3
d) 4
e) 5
Solução: Independente de como foi sua resposta, é bastante
provável que a resposta à segunda pergunta esteja diretamente relacionada com a
primeira. Se você teve poucos encontros, vai se sentir menos feliz – e vice-versa. Entretanto, quando as mesmas
perguntas são feitas em ordens trocadas, a quantidade de encontros não
influencia o quão feliz a pessoa se acha. Quando deparado com uma pergunta
objetiva (quanto encontros teve no mês), seguida por outra subjetiva
(felicidade), a resposta da primeira acaba por influenciar a segunda. Essa
projeção é chamada de substituição.
FONTE: http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/o-livre-arbitrio-nao-existe-dizem-neurocientistas